P E R S P E C T I V A S

Para uma crítica do Conhecimento nas sociedades pós-modernas

30.4.06

Perspectivas sobre "Metapolis: acerca do futuro da cidade"

«Toda a cidade, por mais pequena que seja, está com efeito
dividida em duas, uma é a cidade dos pobres, a outra é a dos
ricos: elas estão em guerra uma contra a outra, e em cada uma
delas existem divisões mais pequenas, e passareis completamente
ao lado da questão, se as tratares todas como um único
Estado.»

Platão, República IV



Este livro apresenta, portanto, uma simetria incomum e inquietante: após um século de debates sobre como planejar a cidade, após reiteradas tentativas de pôr ideias em prática, damo-nos conta de que voltamos quase sempre ao ponto de partida. Como acompanhar as mudanças? Como pensar a dimensão da experiência da metrópole a partir de uma simples leitura? Como pensar a relação das pessoas com a cidade e com o mundo?

De facto, julgo que ainda não temos instrumentos analíticos que assegurem uma verdadeira análise científica destas problemáticas. No entanto, a consciência do nosso desenvolvimento é um passo fundamental para podermos pensar a relação das escalas na experiência da metrópole, seus riscos e vulnerabilidades, indo além deste breve comentário, que se limitou a descrever algumas reflexões a partir da minha experiência de leitor, e também de cidadão.

Concordo que é preciso considerar a cidade como complexa e não somente como complicada. Neste sentido, o desafio que se coloca hoje à cidade prende-se com a “capacidade de contrariar as tendências de uma cada vez maior segregação sócio-espacial que o custo dos bens urbanos está a provocar.” Este desafio tem, sem dúvida, uma raiz económica, mas é sobretudo de índole sócio-política “porque o primado da economia está a destruir, cada vez mais a capacidade de convivência sócio-espacial gerando formas altamente segregadas de ocupação territorial.”

A cidade como lugar de realização humana, e, acima de tudo, como centralidade simbólica, parece uma fórmula do passado. É neste sentido que muitas das políticas urbanas, no momento presente, estão mais preocupadas com a qualificação plurifacetada do espaço urbano, ou mais concretamente, com o «fazer cidade por toda a cidade». Indo mais longe, e a acentuar-se esta dicotomia, muitos questionam mesmo a própria cidade e os seus limites e, no extremo, a própria pertinência do termo. A questão é a de estarmos perante uma cidade ou várias cidades, ou perante nenhuma cidade.

Questão relevante, neste eixo, será o próprio reequacionamento das funções urbanas tradicionais, pois há partes da cidade que têm sido votadas a uma monofuncionalidade forçada através de operações de zonamentos funcionalistas e minimalistas, o que leva a questionar o seu próprio papel enquanto partes de um todo urbano que se quer plurifuncional numa pluriformidade de manifestações de urbanidade.

Contudo, ainda há magia no espaço público urbano, e, presumivelmente, na sua criação. A tenuidade em determinar aquilo que faz com que o espaço público se torne um bom espaço para se viver persiste, e continuará a impressionar os olhos de quem investiga, lê, vê e sente a cidade. Um bom espaço público é aquele que capta o olhar e amplia a imaginação, é talvez aquele que não foi desenhado para ser fantástico, mas tão simplesmente, para cumprir a sua função.

É claro que existem tantos tipos de relações como há diferentes tipos de indivíduos, mas a questão mais importante é que as diferenças são vistas como relativas, e não como absolutas. E se não existem fronteiras absolutas que separam as relações sociais das que não são, então para que serve, afinal de contas, o nosso conceito social aplicado às realidades vividas?

Para finalizar, podemos dizer que este livro não é apenas mais um conjunto de reflexões interessantes, pelo contrário, trata-se de uma obra que vem lançar um novo debate acerca do mundo que temos vindo a transformar. Entretanto, e embora não sendo a opinião expressa pelo autor do livro, julgo que até ao momento, não existe nenhuma teoria única da génese e da função da cidade que congregue todos os aspectos significativos da vida da cidade. Estas teorias observam a cidade de pontos de vista bastante diferentes, sendo que alguns pontos de vista específicos estão muito mais evoluídos do que outros.

Não surpreende ninguém ouvir-se que é impossível explicar como é que uma cidade deveria ser, sem se compreender como é que ela é. Talvez seja surpreendente contar o inverso: que a compreensão de como é a cidade depende de uma avaliação de como ela deveria ser. Mas os valores e as explicações parecem-me inextricáveis. A teoria tem várias deficiências. A mais flagrante é a falta de uma teoria complementar acerca do modo como as cidades nascem e funcionam. Por isso, devemos procurar manter uma visão crítica apurada do meio em que vivemos, e observar de forma contextualizada e globalizante, com uma visão das suas partes e do todo, a execução de locais reais para as pessoas que neles vivem.

Não há teoria nenhuma que possa ser considerada madura enquanto não demonstrar de que modo é que a execução tende a variar com o contexto político e social, com a concentração de poder, com a homogeneidade ou pluralidade de valores, com a estabilidade de uma sociedade, com a sua politica económica, com os seus recursos e tecnologia, já para não falar do carácter físico do seu ambiente geral. Deve indicar as posições ao longo das dimensões que provavelmente serão escolhidas. De facto, como é que um poder central rico mas ameaçado, pode sentir-se inclinado a valorizar um determinado aspecto, por exemplo, em comparação com as escolhas dos grupos igualitários pequenos e relativamente pobres? Como se pode observar, é improvável que a teoria possa prever todas as posições tomadas.

Seria no entanto possível esperar que houvesse tendências gerais de variação, devido ao tipo e à situação social. Contudo, os valores também são o resultado do desenvolvimento histórico de uma cultura, não são predeterminados por lei. As dimensões não põem ser estudadas isoladamente, quer do seu contexto social, quer ainda umas das outras. Que elementos são mutuamente independentes de tal modo que a sua execução varia sem afectar outros tipos de execução? Por outro lado, que elementos são mutuamente independentes de tal modo, que a sua execução varia sem afectar outros tipos de execução? Por outro lado, que elementos devem ser sempre modificados em série, ou que elementos estão necessariamente em conflito mútuo?

Embora exigente com os requisitos que uma metapole deve procurar manter, François Ascher levanta mais questões e espaços de dúvida, do que soluções concretas e acabadas acerca destas problemáticas. No entanto, não acredito que o desenvolvimento das cidades catapulte a humanidade para um período de bonança sem fim.

A verdade é que não se pode reparar o futuro, ou aderir de forma inconsciente a uma doutrina populista da mítica sociedade da informação da metapole, onde escasseia não só o sentido crítico, mas também o atrevimento intelectual de se ultrapassar as barreiras dos modelos meramente teóricos, para uma visão prática e efectiva da realização de tão responsável tarefa.

Apanhada entre expectativas crescentes, e uma diminuição de recursos naturais, a nossa sociedade tem de procurar um fluxo ininterrupto de inovação a fim de dar resposta às suas necessidades. E de onde virá esse fluxo de inovação? E a que tipos de arquitectura homem-espaço devemos aspirar para os locais de trabalho do futuro? Parece evidente que tamanho esforço no sentido de uniformidade, engloba normalmente todos os elementos da cidade numa única e totalmente abrangente rede de comunicações francamente utópica.

Mas quando chegaremos ao tempo em que os trabalhos com redes de comunicação de dados humanizam a visão do indivíduo na sociedade urbana? Quando chegaremos ao tempo em que, em vez de lidar com uma multidão de pessoas, cada uma das quais com uma visão parcelar da realidade, todos os indivíduos serão vistos como um único ser humano, com acesso a toda a informação relevante e com poder de actuar sobre essa mesma informação? Estou certo de que darei boas vindas a essa humanização da arquitectura da informação.

Mas nas cidades abundam necessidades inteiramente novas em matéria de habitação, educação e utilização de energia, que ainda mal começaram a beneficiar do impacto das novas tecnologias. Presumo que um projecto global com sentido produzirá uma diferença significativa em algum aspecto do mundo em que vivemos, e fará com que algumas dessas diferenças significativas alcancem uma escala que as leve a todo o globo, e que este será o melhor emprego a dar às mentes e às máquinas que a nossa sociedade pode reunir, mas tal projecto dependerá, de forma conclusiva, da inspiração dos líderes humanos.

Portanto, que provas temos de que a metapolização, para além de prevalecer nas relações económicas e entre instituições, irá construir um novo mundo? Será que as carências e a dominação institucional vão desaparecer nas mandíbulas da metapole? E será possível que as insuficiências sociais e morais dos média actuais venham a desaparecer graças à abundância da informação? Esta visão utópica – a globalização como salvação – é a expressão da antiga aspiração dos ramos libertados das toxinas da história graças ao conhecimento científico, supondo que a sociedade da informação fará de nós seres livres.

Actualmente, as esperanças de que o mundo ligado pelas auto-estradas da informação seja um mundo feliz são, em regra, condicionadas por receios diversos: o nosso sistema de ensino é inadequado, a consciência cívica enfraqueceu, os grupos sociais estão radicalizados e a economia não se encontra estabilizada.

Como se pode ser adepto de um projecto de sociedade que anuncia uma prosperidade eterna sem falhas, quando não existe forma de evitar uma crise profunda da economia global? Na minha opinião, acho que na construção de uma sociedade moderna, hiper-tecnológica e global, as suas inerentes vicissitudes utópicas e virtualidades místicas, nutrem expectativas exageradas em relação à mesma. Talvez se exigirmos um pouco menos, e nos voltarmos ao estudo de alternativas legítimas, consensuais e plausíveis, conseguiremos levar ao campo de discussão um outro projecto, um outro modelo de vida em sociedade no futuro.

Ainda assim, a metapolização, à semelhança de outras ficções globalizadoras, parece que talvez se realize – não por escolha moral, mas pelas vicissitudes inerentes ao desenvolvimento tecnológico das nossas sociedades. Talvez por isso seja quase certo que a cidade do séc. XXI será diferente, e que os grandes desafios dos anos vindouros não serão ultrapassados numa mudança voluntária da organização espacial das cidades.

Mas como sempre na história, as cidades do séc. XXI verão as suas formas testemunhar aquilo que a nossa geração terá sabido fazer para enfrentar esses desafios.

No turbilhão dos lugares públicos e privados

«A casa é um segredo. Um segredo e uma certeza, a de saber
que o segredo estará bem guardado. Uma casa é sempre
mais do que um alojamento, é uma habitação e uma cumplicidade.»

Thierry Paquot, L’Archicteture et L’ Exclusion


Como o autor muito bem coloca, eis a questão essencial para este capítulo: como arbitrar interesses gerais de escalas diferentes? A uma evocação do espaço público associamos, vulgarmente, uma imagem de urbanidade. Contudo, a sua relação com a cidade é, de certo modo, ambígua, dado que são, simultaneamente, entidades físicas distintas e elementos espacialmente íntimos.

Enquanto que a cidade se apresenta, aos olhos dos seus habitantes, como uma realidade concreta, somatório de edifícios, equipamentos e infra-estruturas, o espaço público representa, numa acepção corrente, a materialização do seu inverso, isto é, a ausência de concretização física. Contudo, a noção de espaço público não é uma negação da cidade, pelo contrário, representa a afirmação da sua existência. Na ausência de edificação, corporiza-se a presença das pessoas que a habitam; na sua configuração espacial contida e delimitada pelo seu edificado, vive-se a dinâmica e o movimento das acções que a caracterizam.

Por ser um espaço eminentemente social, é também espaço de representação, no qual a sociedade se faz visível. Será assim possível lêr e compreender no espaço público, a expressão do fervilhar de forças que habitam a cidade. Todavia, ao tentar efectuar uma leitura destas dinâmicas, não obtemos uma imagem clara e definida. A cidade tornou-se numa entidade, cuja escala e complexidade torna difícil definir qual o seu real papel e natureza.

Impulsionada por novas formas de expansão e urbanização crescentes, assistimos progressivamente, a uma mudança na escala da cidade, que sai do seu quadro espacial tradicional, dissolvendo-se pelo território e transformando-se tendencialmente numa massa fragmentada. De facto, na obra de Ascher, julgo que estamos perante um modelo de desenvolvimento urbano, que alimenta uma ideia de cidade-somatório de tecidos soltos, acessos viários e acumulações comerciais, onde o fenómeno da metropolização se tornou numa realidade urbana inegável.

Deste modo, os espaços produzidos pelas dinâmicas contemporâneas, sejam denominados de áreas metropolitanas, de cidades-regiões ou metrópoles, são, acima de tudo, a construção de um novo tecido urbano, simultaneamente, extenso e descontínuo, espacial e funcional, resultado da adição de uma multiplicidade de “não-lugares” e de elementos dispersos.

Encontramos esta visão tanto na megalópolis de Jean Gottmann, como na metapolis de François Ascher, na metropólis fracturada de Jonathan Barnett, na cidade difusa de Francesco Indovina, na City of Quartz de Mike Davis, na Edge City de Joel Garreau, tal como na multiplicidade de reflexões que surgem actualmente sobre a evolução da forma da cidade. O que encontramos de comum em todas estas perspectivas é a afirmação de uma estratégia urbana de construção de um novo território urbanizado, distinto de uma entidade que denominamos cidade. Uma cidade exige territórios articulados, lugares com capacidade de serem centralidades integradoras, polivalentes e constituídos por tecidos urbanos heterogéneos, tanto social como funcionalmente.

Afastando-se da vida pública, o cidadão converte-se em consumidor, e a vida urbana num simples produto imobiliário. Assistimos, deste modo, a uma progressiva degradação física e simbólica dos espaços urbanos, pois apesar das “habituais intervenções estéticas redentoras” sobre os espaços públicos dos centros históricos – que apesar do seu simbolismo representam actualmente, uma fracção cada vez mais pequena do território urbano – todos os outros espaços da cidade se fecham sobre si e se esvaziam de sentido.

Reforçada pelas dinâmicas poderosas do urbanismo de produtos, pela submissão ao mercado imobiliário e pela força económica da especulação privada, sentimos progressivamente a sintaxe dos objectos-mercadoria a substituírem a cidade do intercâmbio e da diversidade. Será assim, entre a proliferação e a banalização do automóvel individual, entre o êxito dos condomínios privados e dos complexos habitacionais desligados do restante tecido urbano, que encontraremos uma cidade contemporânea com uma tendência para a progressiva privatização dos seus domínios públicos.

Perante um panorama em que a esfera privada penetrou em todas as dimensões da imagem e da cultura urbanas, é já difícil encontrar as fronteiras entre os territórios e as esferas públicas e privadas da cidade. Encontramos os sinais desta gradual mutação, em fenómenos tão diversos como o crescente número de condomínios fechados; as concessões privadas de largos e praças a parques de diversões, esplanadas ou demonstrações comerciais; as parcerias entre entidades públicas e privadas para a construção de jardins ou arranjos urbanísticos, associados frequentemente à exploração privada de parques de estacionamento a eles agregados; na parafernália de outdoors e equipamentos urbanos que funcionam enquanto suportes comerciais; nos anúncios debitados pelas televisões e écrans presentes cada vez mais nos transportes e espaços públicos urbanos; ou mesmo em fenómenos de maior dimensão como a construção de cidades simuladas dentro da própria cidade, como os parques temáticos, os festivais de rock ou as cidades empresariais.

Este modelo de construção de cidade retira o domínio público das suas prioridades, e potencia a afirmação crescente do sector privado. A esfera pública perde progressivamente o seu papel de elemento estruturador das rotinas urbanas, enquanto que o espaço público urbano representa, em muitos casos, apenas um espaço residual entre edifícios e vias.

Reflexo de uma extensa crise de valores, identificamos em muitos novos comportamentos colectivos uma evidente “agorafobia”, decorrente de um medo ou desconforto na utilização do espaço público, dado que este não é reconhecido como um espaço protector, nem como um espaço protegido. Isto é, não proporciona segurança ou apresenta utilidade a um conjunto alargado de indivíduos. Em alternativa, observamos como, nos grandes centros urbanos, estão repletas as ruas e as praças cobertas dos centros comerciais e como se fecham as ruas de acesso aos bairros ou condomínios privados. Aqui encontramos uma nova urbanidade, novos hábitos e novos usos.

Num espaço que oscila entre a propriedade privada e o uso colectivo, encontramos uma envolvente onde tudo está organizado, o ambiente e a temperatura estão controlados, onde os nossos passos estão vigiados e onde se as pessoas se sentem seguras, apesar de ser – ou talvez por este ser – um local onde a ideia de interacção autêntica entre os cidadãos desapareceu por completo.

Enquanto conceito descritivo, a cidade evoca o domínio do construído sobre o não construído, a densidade populacional e do habitat. Esse espaço construído assenta numa diversidade de oposições: cidade versus não cidade; centro versus bairros; espaços privados versus espaços públicos. Assim, encerra sobretudo uma visão morfológica, e assume-se como lugar da plurifuncionalidade.

Olhada como conceito interpretativo, a cidade refere-se sobretudo à existência de uma grande imbricação entre a apropriação do espaço e a emergência de uma dinâmica colectiva, isto é, a cidade é privilegiadamente o lugar onde os vários grupos, embora permanecendo distintos uns dos outros, encontram entre si possibilidades múltiplas de coexistência e de trocas mediante a partilha de um mesmo território, o que não só facilita os contactos programados, mas principalmente multiplica as hipóteses de encontros aleatórios e favorece o jogo das estimulações recíprocas. Lugar a partir do qual se estrutura o campo das actividades sociais, a cidade também confere uma dimensão sistemática à cultura regional circundante; podendo ser também, pelo contrário, e em certos momentos, lugar de ruptura e de inovação
[1].

[1] Ao encontro deste entendimento parece ir A. Teixeira Fernandes quando refere que, «a construção social do espaço é marcada na cidade, pela centralidade e pela sacralidade. Trata-se de um espaço descontínuo, em correspondência com a própria visualidade do mundo simbólico. É uma representação que resulta de uma apreensão sensorial e imaginética da realidade.»

Uma visão antropológica sobre o que é a cidade

«- E para que serve a cidade, senão para se sair dela no sábado
e no domingo? Para Avandero, como para centenas de milhares de outras
pessoas que se afundam a semana inteira em ocupações cinzentas
para poder escapar ao domingo, a cidade era um mundo perdido,
um moinho para produzir os meios de se sair durante aquelas
poucas horas e depois voltar.»

A nuvem smog, Ítalo Calvino.



São múltiplos os actores, os protagonismos, as estratégias e as políticas. As tensões e contradições operam nessa realidade flutuante e em permanente metamorfose. A cidade contemporânea surge assim como uma verdadeira condensação de projectos e estruturas. Sem sabermos com exactidão onde principia e onde acaba, tacteamos, com metodologias e pontos de vista pluriperspectivados, objectos de análise e de intervenção.

Cidade espectáculo, cidade éclatée, metapolis, cidade genérica, edge city, cidade de quartzo ou fractal, etc. É esta a polissemia de um sujeito-objecto onde se encontram e desencontram as lógicas da própria prática social espácio-temporal, tornada presente nos vários territórios. Mil vezes morta, mil vezes renascida, omnipresente, palco de conflitos, geografia de exclusões, desafio ao planeamento e à acção política, a cidade chama-nos, e cada vez mais. E como diz Kavafis: «A cidade, por onde fores, irá».

De facto, concordo com Ascher quando este admite que a imagem de grandes cidades onde se viveria no reino de uma mistura social completa, quer do ponto de vista social ou funcional, esteja mais associada a uma mitologia de uma comunidade aldeã do que a referências históricas concretas. Com efeito, devemos ter em conta que o crescimento das urbes foi modificando progressivamente a natureza e a escala a que se efectivam as segregações, combinando especializações espaciais, funcionais e sociais, jamais percepcionadas no curso da história. A cidade é também, na sua versão mais simplista, um lugar, e um lugar pode definir-se como lugar de identidade, espaço relacional e histórico; um espaço que não pode definir-se como espaço de identidade, nem como relacional nem como histórico, definirá um não lugar, como propõe Marc Augé. Esta posição radical de análise prende-se com a assumpção de que uma cidade não pode ser considerada unicamente como um conjunto funcional, capaz de gerir e ordenar a sua própria expansão, mas tem de ser assumida como uma estrutura simbólica portadora de um conjunto de sinais e de referências, que permitam o estabelecimento de relações entre a sociedade e o espaço.

É por isso que a formação de uma cidade, neste sentido, implica a produção de um léxico simbólico que caracterize e identifique o quadro imaginário e os valores de referência dos seus habitantes. A dimensão simbólica da cidade não é um facto estranho à vida social e às experiências quotidianas dos seus habitantes, pelo contrário, permite o relacionamento destes numa «dupla hermenêutica». Por um lado, o simbolismo urbano representa um ponto de referência que estrutura e condiciona de muitos modos as actividades sociais, entrando profundamente nos processos que definem as identidades dos actores sociais. Por outro lado, as actividades e as práticas sociais e as constantes interacções desenvolvidas nesse quadro, contribuem para produzir e reproduzir, estruturar e reestruturar a simbologia e a forma urbana.

Enquanto conceito descritivo, a cidade evoca o domínio do construído sobre o não construído, a densidade populacional e do habitat. Esse espaço construído assenta numa diversidade de oposições: cidade versus não cidade; centro versus bairros; espaços privados versus espaços públicos. Encerra sobretudo uma visão morfológica, e assume-se como lugar de plurifuncionalidade.

Se na obra de Ascher, olharmos a cidade como um conceito interpretativo, veremos que ela refere-se sobretudo à existência de uma grande imbricação entre a apropriação do espaço e a emergência de uma dinâmica colectiva, isto é, a cidade é privilegiadamente o lugar onde os vários grupos, embora permanecendo distintos uns dos outros, encontram entre si possibilidades múltiplas de coexistência e de trocas mediante a partilha de um mesmo território, o que não só facilita os contactos programados, mas principalmente multiplica as hipóteses de encontros aleatórios e favorece o jogo das estimulações recíprocas. Lugar a partir do qual se estrutura o campo das actividades sociais, a cidade também confere uma dimensão sistemática à cultura regional circundante; podendo ser também, pelo contrário, e em certos momentos, lugar de ruptura e de inovação
[1].

[1] Como A. Teixeira Fernandes propõe: «A construção social do espaço é marcada na cidade, pela centralidade e pela sacralidade. Trata-se de um espaço descontínuo, em correspondência com a própria visualidade do mundo simbólico. É uma representação que resulta de uma apreensão sensorial e imaginética da realidade».

Do pessimismo

O pessimismo persiste, é certo. Existe e parece estar em crescimento, ainda que nas últimas sondagens sobre o optimismo dos empresários portugueses se note um pequeno decréscimo para os que desenvolvem as suas actividades no sector têxtil.
Já na política, por incrível que pareça, ainda continuamos pessimistas. Digo isto porque parecia que o país inteiro queria eleger um «salvador da pátria» para a presidência da república, e tendo atingido esse objectivo, esperava-se um efeito dominó de união, esperança e optimismo que se desenrolaria em todos os sectores da sociedade portuguesa, incluindo as esferas políticas. Não posso deixar de aceitar estes factos com um ligeiro sentido de ironia. Aqui temos uma indústria têxtil «em farrapos» a ser optimista, e os empresários que apoiaram certas candidaturas a dizer que não há razões de optimismo para a política portuguesa. Talvez este pequeno exemplo vá de encontro precisamente com o que alguns estudiosos querem dizer quando referem os contrastes de Portugal. Contrastes na opinião, nas incoerências dos discursos e das atitudes dos portugueses face às dificuldades em que vivemos.

Os níveis de vida que parecemos ter e que queremos manter ferem gravemente quase todos os pressupostos de contenção e sacrifício necessários para a ultrapassagem da crise económica. Mas ainda assim julgo que podemos associar estes fenómenos de primazia do pessimismo sobre o optimismo a uma pequena analogia com certos acontecimentos que são naturais aos seres humanos: olhemos para a morte e para vida. Por maior que seja a felicidade do nascimento de um filho ou de uma filha, julgo que será sempre maior a dor que a sua morte causará aos seus pais, do que a experiência que viveram juntos enquanto estavam vivos. De facto, a própria lembrança do quanto foram felizes, poderá mesmo servir para aumentar a tristeza e o seu sentimento de falta ao invés de reconfortar a sua ausência, arrastando-se no tempo através de todas as cerimónias fúnebres, a divulgação social do seu desaparecimento na comunidade, até se chegar finalmente à aceitação da sua não-existência de uma forma conformada, mas que deixou com certeza as suas feridas emocionais. Na minha opinião, algo de muito semelhante aconteceu ao longo da história portuguesa: ela foi morrendo. Não sei quando tudo aconteceu, mas julgo que de alguma forma foi acontecendo, até chegarmos ao senhor Scolari na Selecção e aos escândalos sexuais, de corrupção e incompetência que fazem manchete nos diários e que falam abertamente sobre o que está mal na política, na administracção pública, na educação, na saúde, na segurança social, etc.

A democracia permite a liberdade de expressão, mesmo que essa expressão seja norteada por pressupostos explicitamente pessoais de quem tem algum tempo de antena.

Prosseguindo, a felicidade trazida por D. Afonso Henriques, as lutas contra os espanhóis, e mesmo as novidades trazidas pelos Descobrimentos, nunca mais encontraram paralelo na nossa história, e todos os outros acontecimentos esporádicos que fizeram num ou noutro momento esboçar um sorriso no rosto dos portugueses, serviram apenas de balões de oxigénio para prolongar uma morte que se fazia lenta. E os portugueses foram envelhecendo, murmurando o fado e esperando o dia de amanhã com a certeza que não poderia ser melhor do que o dia de ontem, ou dia de hoje. E envelhecemos, não só na idade, mas também no pensamento, até que todo optimismo seria muito fraco face aos motivos para sermos pessimistas.

Desta forma, será o pessimismo apenas uma defesa contra a desilusão? É claro que esperando o pior, não há nada a perder. Talvez esteja na natureza humana uma maior sensibilidade para o que nos fere, do que para o que nos apraz. Mesmo que o amor seja a mais forte das emoções, são as lágrimas, a dor, o sangue, a luta e o desespero que nos marcam, que receamos e dos quais temos o maior dos medos. Por mais que leia, ou que assista a documentários, fico sempre com uma maior impressão de que o mundo está podre, desde das suas mais altas organizações internacionais, até à comissão de proteccção de menores desta cidade ou do padre daquela aldeia. Como diz Saramago, eu não gosto de ser pessimista, mas o mundo é que é péssimo.

Haverá esperança para a humanidade, quando ele é a fonte de todas as injustiças que conduzem à sua própria destruição?

Talvez exagere nestas palavras, mas julgo que estou ainda estou a tempo de questionar o nosso papel no mundo e filosofar um pouco acerca de nós próprios com a ingenuidade própria da juventude, suponho. No entanto, julgo que existem algumas estratégias de combate a esta nossa maneira de ver o mundo. Todos os dias fazemos opções sobre como reagimos aos acontecimentos. Se os portugueses escolherem uma atitude correcta, voluntária, solidária ou até mesmo altruísta no relacionamento com os outros, embuídos de uma noção de estar a agir sobre os valores do que é o «Bem», criamos uma atitude mental positiva nas nossas vidas. Então, a concentração nas coisas que funcionam bem nas nossas vidas trazem uma abertura através da qual certos comportamentos e mudanças de mentalidade podem, de facto, acontecer. E todavia sabemos que o povo português não participa do debate público das grandes e pequenas questões que influenciam as suas vidas e a dos seus vizinhos. Afinal de contas, para quê ter esse trabalho se a nossa opinião não é ouvida? A falta de movimentos cívicos, de redes de voluntariado e de lugares de expressão das suas críticas e contribuições para o desenvolvimento da sociedade, são apenas alguns reflexos disso mesmo.

Ainda assim, e dito tudo isto, julgo que devemos depositar alguma esperança na capacidade extremamente «desenrascada» que os primatas não humanos sempre tiveram para fazer face às dificuldades e perpetuar a sua espécie. É claro que o que estamos a discutir actualmente em nada tem a ver com o perigo da nossa extinção, mas acho que, de alguma forma, pode estar relacionado com o medo de, simplesmente, existir.

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