P E R S P E C T I V A S

Para uma crítica do Conhecimento nas sociedades pós-modernas

23.7.10

A razão de ser dos Exames

Na sua essência, o exame actual não mede nada, a não ser a capacidade de memorização. O projecto de Exames não trata de elevar a inteligência dos alunos, mas simplesmente, e de forma muito permissiva, subjectiva e questionável, estabelecer rankings de avaliação passíveis de comparabilidade europeia (veja-se o caso da Matemática, Física e Química, Biologia, das línguas estrangeiras, etc.).

Ou seja, o ensino, ao invés de potenciar a criação de uma cultura geral de base sólida, de estimular as técnicas expressivas e de comunicação, de criar hábitos de estudo e apresentação de trabalhos reveladores de capacidades críticas, de gestão, síntese, planeamento e organização, demite-se de todas essas funções porque existem os Exames.

Será que alguém compreende a extensão e a gravidade desta inversão de valores? Não vale a pena investir na Educação, em ter bons professores, em cultivar uma cultura de qualidade desde dos primeiros níveis de ensino, porque a realização das provas sai mais barato ao Estado e permite anular a figura do estudante enquanto indivíduo com ideias, capacidades e projectos, para passar a ser um número (mais ou menos o que se passa com os restantes cidadãos)…

Assim, estabelece-se uma meta que não permite às próximas gerações ambicionar o que quer que seja, porque a educação não é importante. Como alguém dizia: "Estudar para quê? Quando muito, só tenho de esforçar-me nos Exames e pronto" (...)

Num ensino de referência, os exames seriam contínuos, sem efeitos práticos no acesso ao ensino superior (é claro que isto conduziria a outro debate que se prende com a anulação dos numerus clausus). O exame deveria ver o seu estatuto reduzido a um mero acto administrativo de verificação de competências, e não de memorização de matérias.

A avaliação deve por isso ser constante, e isso tem que ser aceite com naturalidade por todos. Antigamente, todos os portugueses sabiam o nome dos rios, onde nasciam, por onde passavam...hoje nem a tabuada precisam de saber, muito menos as capitais de distrito e a divisão dos poderes políticos.

Pouco importa ser um génio a matemática se não sabe escrever uma linha em bom português, se não sabe comunicar, interagir, apresentar ideias, ser criativo, ter opinião e objectivos na vida. E é para isso que o nosso sistema de ensino deveria servir: dar objectivos aos jovens, com as ferramentas que precisam para fazer parte da população activa.

O exame é assim, na prática, uma estratégia de facilitismo. O Estado devia preparar pessoas inteligentes, competentes, ousadas, capazes de arriscar e com humildade para se pôr à prova. Só assim é que o país vai crescer.

1.7.10

Mudança e estagnação: o futuro do tempo

Os modelos explicativos da gestão etno-cultural estão a meu ver ultrapassados, e face ao pessimismo, é preciso cuidadosamente reinventar novos mitos que encarnem o espírito de desenvolvimento e progresso que tanto queremos e precisamos. A força anímica de um povo não pode ser facilmente observada ou guardada num frasco como antídoto para as dificuldades. Pelo contrário, ela deve ser continuamente renovada e estimulada para que cresça, ou então definha e morre. Aqui vemos a importância não só do poder político e do seu discurso, mas também da capacidade do próprio povo para enfrentar as situações com a certeza de que vale a pena lutar por uma causa, ainda para mais quando essa causa somos nós. Talvez o remédio milagroso seja, como se diz, o regresso dos mitos. A reinvenção de novas histórias. O clássico herói.

Com efeito, personalidades como Winston Churchill diziam-se inspiradas pelos seus antepassados, e William Shakespeare aprendeu muito do que sabia inspirado pelos heróis dos textos gregos, e eu acredito que estes exemplos tenham desempenhado uma influência muito forte na educação de ambos. O problema é que a sociedade tende a diluir os padrões de pensamento em nome da igualdade. E é sempre mais fácil usar lugares-comuns e chavões fúteis ao invés de uma real reflexão sobre um determinado assunto. E simplesmente resignamo-nos a ser como somos, confundindo razoabilidade com conformismo. O que não é nenhuma surpresa se pensarmos que somos habituados desde dos primeiros anos da nossa formação a seguir as tendências lógicas da maioria, a não dar voz às nossas ideias, a não exercitar as nossas mentes. O lado negativo destes factos é que o resultado será um atrofiamento tanto psicológico quanto intelectual, tanto cultural quanto social.

Como é que podemos esperar que o projecto de vida em sociedade resulte num bem maior e comum a todos, ou seja, em algo de positivo e universal, quando essa mesma sociedade é constituída na sua natureza intrínseca por indivíduos desiludidos e tristes?
Na verdade, podemos observar que ao longo da nossa história, sempre encontrámos de uma forma ou de outra uma relativa união em torno de determinados sentimentos (sentido de honra; humildade e amor à pátria; o vibrar nas vitórias desportivas; o pessimismo actual) e maneiras de sentir quem somos, e quem é o Outro. Ou seja, o povo português é relativamente homogéneo nas suas concepções ideológicas e construções mentais das imagens que desenha acerca de si e dos Outros. É interessante observar que raramente se houve falar do povo português no sentido singular de tomar cada indivíduo como uma unidade própria, autónoma e independente. Somos quase dez milhões, mas parecemos sempre que somos muito mais...É claro que tratamos de assuntos muito delicados para algumas consciências, pois ao assumirmos isto, temos de comprovar com base em exemplos mais ou menos conhecidos ideias que podem não passar de preconceitos fruto da equação pessoal do investigador. É o caso de generalizações como quando afirmamos que fomos ou somos um povo racista, ou preguiçoso, ou fatalista, ou poeta, etc. Nenhuma destas afirmações pode ser cabalmente comprovada, ou refutada. Mas também é um notável reflexo de um meio termo constante, d'un quelque chose inominável mas infinito. Procuramos homogeneizar todas as relações na sua indeterminação, tomamos o desnecessário pelo necessário, e perdemos todo o sentido de necessidade cultural. E é nesta dúvida, nesta perda, neste impasse que somos, que acabamos por ficar perdidos em nós.
Ainda assim, penso que a mudança é possível. E o papel da universidade é fulcral no desenrolar de todas estas questões. Durante muitos anos, era nas universidades que se formavam verdadeiras escolas de pensamento que iriam influenciar e revolucionar a sociedade em que estavam inseridas. E isto não porque procurava educar cegamente os indivíduos de forma homogénea ao serviço do Estado, mas antes porque procurava libertar o espírito das pessoas, estimulando a criatividade própria de cada um como ser singular e útil para o desenvolvimento do país. De facto, a intenção original das academias e das universidades reformadas era proporcionar um lugar publicamente respeitável e um meio de apoio para os homens teóricos - dos quais quando muito há apenas uns tantos em qualquer nação - se encontrarem, trocarem as suas ideias e treinarem jovens nos caminhos da ciência. Hoje em dia, talvez mais do que nunca, o papel de escola de pensamento das universidades deve ser reforçado.

Eu defendo que a universidade como instituição deve compensar o que falta aos indivíduos numa democracia, encorajando os seus membros a praticar um espírito de cultura. Como repositório das mais elevadas capacidades e princípios do próprio regime, deve ter um forte sentido da sua importância fora do sistema de indivíduos iguais. A universidade deve questionar e criticar a opinião pública porque tem dentro de si a fonte da autonomia: a busca e até a descoberta da verdade de acordo com a natureza humana. No entanto, actualmente algo de absolutamente novo e potencialmente negativo é o facto de que a liberdade de pensamento deu lugar à liberdade de expressão, em que o gesto obsceno goza do mesmo estatuto protegido que o discurso demonstrativo. E como é que a ciência reage a isto?

Nós, cientistas sociais, futuros antropólogos, devemos afirmar outras perspectivas que englobem o todo social, e apontar caminhos de resolução fiáveis e efectivamente possíveis. Devemos contrariar os discursos fáceis e preconceituosos acerca da realidade. Para verdadeiramente compreendermos o carácter da modernidade, da globalização, dos conflitos sociais, e tantos outros conceitos problemáticos, devemos-nos afastar da experiência limitativa do aqui e agora que só nos leva a uma consequente perda de perspectiva. Eu recuso-me a desistir face à crise de conhecimento que se tornou em alguns países uma ferramenta politicamente útil, e aceitar de forma conformada esta crise da democracia liberal. Curiosamente, denoto que é em democracia, a mais livre das sociedades, que os homens acabam por estar mais dispostos a aceitar doutrinas que lhes são impostas. Ninguém sozinho parece poder ou ter o direito de controlar acontecimentos que parece serem movidos por forças impessoais. Veja-se a desculpabilização dos moldadores da opinião pública sob a égide da liberdade absoluta de poderem dizer tudo aquilo que lhes apetece, e desenhar tudo aquilo que se queira, mesmo que se esteja a gritar a plenos pulmões para matarmos todos os judeus, ou muçulmanos.
Isto leva-nos a outra questão. No que diz respeito à forma como tem sido debatido a polémica dos cartoons, julgo que nenhuma personalidade mediática falou tão acertado quanto o Dr. Ângelo Correia no programa Prós e Contras da RTP. Toda a defesa da sua opinião acerca do assunto era a que um antropólogo teria: devemos separar os vários conceitos e analisá-los no seu contexto, pois uma coisa é o fanatismo religioso, outra coisa são tradições ancestrais; outra é o islamismo, outra é a instrumentalização das massas pelo poder político, outra coisa ainda são milícias armadas, outra é o povo, e não podemos simplesmente pôr tudo no mesmo «saco». Para além disso, ainda devemos ter em mente que os media só filmam aquilo que mais impacto terá nos telespectadores. Uma multidão enraivecida a queimar bandeiras é sempre mais espectacular que a restante maioria da população que não participa nestes comportamentos e assiste distanciadamente à violência gratuita que não subscrevem.

De facto, a adulação do povo e a incapacidade de resistir à opinião pública são os vícios democráticos característicos dos escritores, artistas, jornalistas e quaisquer outros que estejam dependentes de uma audiência insaciável. Um homem nunca deve deixar-se vencer pelos acontecimentos, e devemos ter a maturidade de aceitar que as esperanças de modificar a humanidade quase sempre culminam em modificar não a humanidade, mas o pensamento de uma pessoa.

Lembro-me de ter lido algures que os antigos estavam sempre a elogiar a virtude, mas os homens não se tornavam mais virtuosos por causa disso. Por toda a parte havia regimes podres, tiranos a perseguir o povo, homens injustiçados, etc., e os mais sábios e prudentes viam claramente o que estava errado em tudo isto, mas a sua sabedoria não gerava o poder para fazer qualquer coisa a este respeito.

Talvez o nosso pessimismo seja um produto dos tempos. Numa democracia onde os homens já pensam que são fracos, acabamos por estar demasiado abertos a teorias que ensinam que somos fracos, as quais fazem os indivíduos pensar que controlar a acção é impossível, e o resultado é claramente um maior enfraquecimento de nós próprios. O porquê das problemáticas sociais é ainda recente e estranho ao moderno espírito democrático, que não consegue libertar-se dos seus constragimentos intelectuais e analisar adequadamente, não «encaixadamente», as diferenças e as identidades dos indivíduos.

Sempre que há um momento complicado, como o clima de pessimismo que vivemos actualmente, os homens democráticos devotados ao pensamento têm uma crise de consciência, e procuram descobrir um caminho para interpretar os seus esforços pelo padrão da utilidade, ou então tendem a abandoná-los ou a deformá-los. Julgo que esta tendência é realçada pelo facto de que na sociedade igualitária praticamente ninguém tem uma grande opinião de si próprio, e baseia-se em estereótipos convencionais para representar o Outro.
Em todo o caso, teremos sempre de admitir que a natureza humana não se pode alterar para ter um mundo livre de problemas. Por mais desesperante que isto possa ser, a verdade é que o Homem, e os portugueses não são seres que facilmente resolvam problemas, somos antes seres que acima de tudo reconhece problemas e os aceita, muito embora tenhamos que admitir que é o esquecimento a nossa forma mais subtil de resolver problemas. Falta-nos a ousadia de afirmar como Marx de que a humanidade nunca coloca a si própria problemas que não sabe resolver. Enfim, há sempre tanto para dizer. Mas tudo isto não passa de um parecer pessoal. As grandes questões que cada um de nós deveria colocar a si próprio continuam a ser «quem sou eu», «o que é o Outro», e será que a minha «opinião serviria como valores»?

Isto leva-me a recordar uma passagem de Tocqueville: «(...) nas sociedades democráticas, cada cidadão está habitualmente ocupado com a contemplação de um objecto muito insignificante, que é ele próprio( ...)». No caso português, a situação assume contornos peculiares, sendo por ventura o grande espírito consumista, a corrida desesperada ao crédito financeiro e aos bens de luxo alguns bons exemplo dessa contemplação desmedida por nós mesmos. A gravidade do problema é que essa contemplação é agora intensificada por uma indiferença maior para com o passado e pela perda de uma visão nacional do futuro. Ainda assim, podemos depositar as nossas esperanças nos jovens de amanhã para a construção de uma nova atitude no espírito dos portugueses. Mas infelizmente, o único projecto comum e fantástico que parece ainda ocupar a mente de muitos jovens, especialmente as mentes dos jovens norte-americanos, não é o fim da guerra ou o combate à fome, mas sim a exploração do espaço, que toda a gente sabe estar vazio...

Do pessimismo trágico à razão de existir

O pessimismo persiste, é certo. Existe e parece estar em crescimento, ainda que nas últimas sondagens sobre o optimismo dos empresários portugueses se note um pequeno decréscimo para os que desenvolvem as suas actividades no sector têxtil. Já na política, por incrível que pareça, ainda continuamos pessimistas.

Digo isto porque parecia que o país inteiro queria eleger um «salvador da pátria» para a presidência da república, e tendo atingido esse objectivo, esperava-se um efeito dominó de união, esperança e optimismo que se desenrolaria em todos os sectores da sociedade portuguesa, incluindo as esferas políticas. Não posso deixar de aceitar estes factos com um ligeiro sentido de ironia. Aqui temos uma indústria têxtil «em farrapos» a ser optimista, e os empresários que apoiaram certas candidaturas a dizer que não há razões de optimismo para a política portuguesa. Talvez este pequeno exemplo vá de encontro com o que certos autores querem dizer quando referem os contrastes de Portugal. Contrastes na opinião, nas incoerências dos discursos e das atitudes dos portugueses face às dificuldades em que vivemos. Os níveis de vida que parecemos ter e que queremos manter ferem gravemente quase todos os pressupostos de contenção e sacrifício necessários para a ultrapassagem da crise económica. Mas ainda assim julgo que podemos associar estes fenómenos de primazia do pessimismo sobre o optimismo a uma pequena analogia com certos acontecimentos que são naturais aos seres humanos: olhemos para a morte e para vida. Por maior que seja a felicidade do nascimento de um filho ou de uma filha, julgo que será sempre maior a dor que a sua morte causará aos seus pais, do que a experiência que viveram juntos enquanto estavam vivos. De facto, a própria lembrança do quanto foram felizes, poderá mesmo servir para aumentar a tristeza e o seu sentimento de falta ao invés de reconfortar a sua ausência, arrastando-se no tempo através de todas as cerimónias fúnebres, a divulgação social do seu desaparecimento na comunidade, até se chegar finalmente à aceitação da sua não-existência de uma forma conformada, mas que deixou com certeza as suas feridas emocionais. Na minha opinião, algo de muito semelhante aconteceu ao longo da história portuguesa: ela foi morrendo.

Não sei quando tudo aconteceu, mas julgo que de alguma forma foi acontecendo, até chegarmos ao senhor Scolari na Selecção e aos escândalos sexuais, de corrupção e incompetência que fazem manchete nos diários e que falam abertamente sobre o que está mal na política, na administração pública, na educação, na saúde, na segurança social, etc. A democracia permite a liberdade de expressão, mesmo que essa expressão seja norteada por pressupostos explicitamente pessoais de quem tem algum tempo de antena. Prosseguindo, a felicidade trazida por D. Afonso Henriques, as lutas contra os espanhóis, e mesmo as novidades trazidas pelos Descobrimentos, nunca mais encontraram paralelo na nossa história, e todos os outros acontecimentos esporádicos que fizeram num ou noutro momento esboçar um sorriso no rosto dos portugueses, serviram apenas de balões de oxigénio para prolongar uma morte que se fazia lenta. E os portugueses foram envelhecendo, murmurando o fado e esperando o dia de amanhã com a certeza que não poderia ser melhor do que o dia de ontem, ou dia de hoje. E envelhecemos, não só na idade, mas também no pensamento, até que todo optimismo seria muito fraco face aos motivos para sermos pessimistas.

Desta forma, será o pessimismo apenas uma defesa contra a desilusão? É claro que esperando o pior, não há nada a perder. Talvez esteja na natureza humana uma maior sensibilidade para o que nos fere, do que para o que nos apraz. Mesmo que o amor seja a mais forte das emoções, são as lágrimas, a dor, o sangue, a luta e o desespero que nos marcam, que receamos e dos quais temos o maior dos medos. Por mais que leia, ou que assista a documentários, fico sempre com uma maior impressão de que o mundo está podre, desde das suas mais altas organizações internacionais, até à comissão de protecção de menores desta cidade ou do padre daquela aldeia. Como diz Saramago, eu não gosto de ser pessimista, mas o mundo é que é péssimo. Haverá esperança para a humanidade, quando ele é a fonte de todas as injustiças que conduzem à sua própria destruição? Talvez exagere nestas palavras, mas julgo que estou ainda estou a tempo de questionar o nosso papel no mundo e filosofar um pouco acerca de nós próprios com a ingenuidade própria da juventude, suponho. No entanto, julgo que existem algumas estratégias de combate a esta nossa maneira de ver o mundo.

Todos os dias fazemos opções sobre como reagimos aos acontecimentos. Se os portugueses escolherem uma atitude correcta, voluntária, solidária ou até mesmo altruísta no relacionamento com os outros, imbuídos de uma noção de estar a agir sobre os valores do que é o «Bem», criamos uma atitude mental positiva nas nossas vidas. Então, a concentração nas coisas que funcionam bem nas nossas vidas trazem uma abertura através da qual certos comportamentos e mudanças de mentalidade podem, de facto, acontecer. E todavia sabemos que o povo português não participa do debate público das grandes e pequenas questões que influenciam as suas vidas e a dos seus vizinhos. Afinal de contas, para quê ter esse trabalho se a nossa opinião não é ouvida?

A falta de movimentos cívicos, de redes de voluntariado e de lugares de expressão das suas críticas e contribuições para o desenvolvimento da sociedade, são apenas alguns reflexos disso mesmo. Ainda assim, e dito tudo isto, julgo que devemos depositar alguma esperança na capacidade extremamente «desenrascada» que os primatas não humanos sempre tiveram para fazer face às dificuldades e perpetuar a sua espécie. É claro que o que estamos a discutir actualmente em nada tem a ver com o perigo da nossa extinção, mas acho que, de alguma forma, pode estar relacionado com o medo de, simplesmente, existir.

17.6.10

O ego nacional num país das maravilhas

Nicolau Santos, Director - adjunto do Jornal Expresso, refere na revista "Exportar" que conhece um país que tem uma das mais baixas taxas de mortalidade mundial de recém-nascidos, melhor que a média da UE, um país onde tem sede uma empresa que é líder mundial de tecnologia de transformadores. Um país que é líder mundial na produção de feltros para chapéus, que tem uma empresa que inventa jogos para telemóveis e os vende no exterior para dezenas de mercados, que tem uma empresa que concebeu um sistema pelo qual você pode escolher, no seu telemóvel, a sala de cinema onde quer ir, o filme que quer ver e a cadeira onde se quer sentar. Um país que tem uma empresa que inventou um sistema biométrico de pagamento nas bombas de gasolina, que tem uma empresa que inventou uma bilha de gás muito leve que já ganhou prémios internacionais, um país que tem um dos melhores sistemas de Multibanco a nível mundial, permitindo operações inexistentes na Alemanha, Inglaterra ou Estados Unidos, um país que revolucionou o sistema financeiro e tem três Bancos nos cinco primeiros da Europa. Um país que está muito avançado na investigação e produção de energia através das ondas do mar e do vento. Um país que tem uma empresa que analisa o ADN de plantas e animais e envia os resultados para toda a UE, um país que desenvolveu sistemas de gestão inovadores de clientes e de stocks, dirigidos às PMES, que tem diversas empresas a trabalhar para a NASA e a Agência Espacial Europeia, que desenvolveu um sistema muito cómodo de passar nas portagens das auto-estradas, que inventou e produz um medicamento anti-epiléptico para o mercado mundial, que é líder mundial na produção de rolhas de cortiça. Um país que produz um vinho que em duas provas ibéricas superou vários dos melhore vinhos espanhóis, que inventou e desenvolveu o melhor sistema mundial de pagamento de pré-pagos para telemóveis, que construiu um conjunto de projectos hoteleiros de excelente qualidade pelo Mundo.
Diz ele que o leitor, possivelmente, não reconhece neste país aquele em que vive... Portugal. Mas afirma que tudo é verdade.Tudo o que leu acima foi feito por empresas fundadas por portugueses, desenvolvidas por portugueses, dirigidas por portugueses, com sede em Portugal, que funcionam com técnicos e trabalhadores portugueses. Chamam -se, por ordem, Efacec, Fepsa, Ydreams, Mobycomp, GALP, SIBS, BPI, BCP, Totta, BES, CGD, Stab Vida, Altitude Software, Out Systems, WeDo, Quinta do Monte d'Oiro, Brisa Space Services, Bial, Activespace Technologies, Deimos Engenharia, Lusospace, Skysoft, Portugal Telecom Inovação, Grupos Vila Galé, Amorim, Pestana, Porto Bay e BES Turismo.
E desenvolve, afirmando que há ainda grandes empresas multinacionais instalada no País, mas dirigidas por portugueses, com técnicos portugueses, de reconhecido sucesso junto das casas mãe, como a Siemens Portugal, Bosch, Vulcano, Alcatel, BP Portugal e a Mc Donalds (que desenvolveu e aperfeiçoou em Portugal um sistema que permite quantificar as refeições e tipo que são vendidas em cada e todos os estabelecimentos da cadeia em todo o mundo).

Explica Nicolau Santos que é este o País de sucesso em que vivemos, estatisticamente sempre na cauda da Europa, com péssimos índices na educação, e gravíssimos problemas no ambiente e na saúde...etc, mas que só falamos do País que está mal, daquele que não acompanhou o progresso, e que seria tempo de mostrarmos ao mundo os nossos sucessos e nos orgulharmos disso.

Bem, isso é de facto muito interessante, mas... falemos verdade.

O problema do nosso país, por mais optimistas que possamos ser, é que as coisas boas praticamente não têm expressão face à extensão e à gravidade de todos os problemas que afectam a vida de milhões de pessoas. Tentar fingir que existe muito sucesso e mérito onde mais não há do que casos pontuais de relativa satisfação para um número muito restrito de pessoas, é esconder a verdade. Por isso, o país retratado nessa crónica não é Portugal. Não é o Portugal que conhecemos. Não é o Portugal que retrata a sociedade portuguesa e os portugueses. Tanto assim é que a grande aposta do cronista é tentar despertar o maior espanto e surpresa possível junto do leitor, ao informar que existem empresas com sucesso em Portugal.

Ora, é precisamente na cristalização dessa intenção que reside a sua maior falha, pois ao partir do princípio que causará surpresa e espanto, assume, mesmo que inconscientemente, que aquele Portugal que quer representar não existe na vida real dos cidadãos. Ou seja, se não é perceptível, como invocar essa caracterização para ilustrar o país? Considero-me um realista crítico. Por isso, optimismo ou pessimismo mais não são para mim mais do que estados de espírito individuais que não se devem misturar na análise de factos sociais.

Relativamente às últimas notícias que tanto têm denegrido as instituições, empresas, órgãos de soberania, etc., aplico uma pequena metáfora: diz-se que basta uma peça de fruta podre num saco para estragar todas as outras. Imagine agora que não existe apenas uma, mas duas, três, enfim, que a maioria da taça está cheia de frutas podres. O que é que as outras fazem? Das duas uma: ou por magia curam as restantes (o que sabemos não ser possível), ou então não resta outra hipótese senão, após uma cuidada apreciação, retirar o que está podre para salvar as restantes.

Não sei se a ingenuidade do cronista é intencional ou se o objectivo do seu texto é realmente fazer-me sentir orgulhoso do país por causa das empresas que nele alcançam sucesso na sua área de negócios, que têm muitos lucros e que vendem muito (sem sabermos se à custa de empregos precários, falsos recibos verdes, salários mínimos, despedimentos de mão-de-obra para haver aumentos salariais para gestores, etc)..

Do ponto de vista do autor, até fico com a impressão que tudo isso é mais importante do que focar os nossos esforços em procurar conhecer os flagelos sociais para assim os podermos mitigar, construindo uma nova cultura de valores..

Quanto a mim, prefiro orgulhar-me da nossa história e da nossa capacidade de resistência num mundo pseudo-desenvolvido.

Empresas nascem, lucram e morrem.

É o país que fica.

7.7.07

Um primeiro olhar




Continuo a achar incrível como tudo muda ao longo do tempo, ainda que as coisas aparentem permanecer imóveis no mesmo lugar.
Neste mundo, tudo é passível de crítica. A própria realidade que observamos é questionada todos os dias por milhões de primatas humanos.

Não há informação verdadeira, da mesma forma que não existem factos que por si só sustentem o discurso argumentativo que se segue.
Por tudo aquilo que ouvimos, sentimos e lemos, sabemos que não há verdades absolutas:

Apenas perspectivas.

14.6.06

Etnicidades, povos caçadores-recolectores e o «Outro»: uma crítica antropológica

Antes de passarmos à recensão do livro, convém contextualizar de forma breve as temáticas inerentes e que vêm apresentadas no seu pertinente título Ethnicity, Hunter-gatherers and the “Other” Association or Assimilation in África. De facto, o fascínio com os povos caçadores-recolectores e o seu modo de vida permanece bem vivo e talvez mais actual que nunca, e não é difícil descobrir as razões por detrás deste elevado interesse, não só pelas comunidades académicas de investigadores sociais, mas também pelo público em geral.
Os povos caçadores-recolectores posicionam-se no pólo oposto da densa vida urbana que a maior parte da humanidade experencia. Estes caçadores-recolectores ainda são vistos como detentores de algumas das questões centrais acerca da condição humana (vida social, política, género, dieta alimentar e nutrição, a vida na natureza, etc.); de como os indivíduos conseguem viver sem um Estado, sem grandes tecnologias acumuladas, e em equilíbrio com a natureza e o meio-ambiente. Como sabemos, os caçadores-recolectores mais conhecidos em África são os pigmeus e os bosquímanos. Os primeiros habitam tradicionalmente a floresta tropical, enquanto que os segundos foram empurrados pela invasão dos seus vizinhos agricultores para a região árida do Kalahari. Os caçadores-recolectores vivem como predadores à custa da natureza. Quer dizer que não transformam practicamente os ecossistemas naturais nos quais se fixaram. Frequentes vezes, exagerou-se a indigência e a precária vida económica e física desses grupos. Lee (1965) estudou minuciosamente catorze acampamentos de bosquímanos !Kung. Segundo este autor, a esperança de vida desses caçadores-recolectores não era tão curta quanto se podia imaginar: em 248 pessoas, 21 (8%) haviam ultrapassado os 60 anos e o mais velho tinha uma idade estimada em 82 anos. Como recursos, têm a ajuda de três utensílios, e duzentas e vinte espécies animais, de que 54 são caçadas, 10 regularmente e as outras ocasionalmente, e isto com dezoito instrumentos (compreendendo os exigidos pelas técnicas da caça com veneno).
Deste modo, como se pode constatar, o ecossistema é, essencialmente, um ecossistema subjectivo organizado por eles, pois que não consomem tudo o que objectivamente será consumível: o meio é o meio apercebido e concebido numa «weltanschauung» cosmológica, o seu «pensamento selvagem», como nós temos o nosso. A sua ração alimentar é constituída por 37% de carne (690 calorias), 33% de noz monjongo, o seu maior recurso (1290 calorias) e 30% de outros vegetais (190 calorias): o que representa um regime de 2140 calorias. Ora os adultos machos medindo 157cm para um peso de 46kg e as mulheres com 147cm para um peso de 41kg, em média, necessitam, para assegurar o respectivo metabolismo de base, de 1400 calorias, por dia, para os homens, e 1100 calorias para as mulheres, se se considerar a sua actividade média, a necessiade média em calorias eleva-se a 2000 e está portanto coberta. Além de que, para assegurar a subsistência de dez pessoas, basta que seis adultos trabalhem (caça, colheita, tiragem de água com balde, apanha de madeira, descasque de nozes, etc...) cinco dias e meio por semana. Compreende-se assim porque razão, a propósito deles, Sahlins (1968) falou da «primeira sociedade de abundância».
Para o desenvolvimento destas questões, fazemos referência aos textos de Hoebel e Frost:

Em 10000 a.c. todas as populações humanas eram caçadoras e/ou colectoras. Por volta de 7000 a.c. começou a forragem extensiva no norte de África, na Ásia menor, no sul da Ásia, no velho mundo, e no deserto e culturas arcaicas do novo mundo. Por volta de 300 a.c. existiram civilizações baseadas na agricultura incipiente no Mediterrâneo, nas faixas do sul e leste asiático do velho mundo, e na América nuclear (a área de altas culturas que se estende do México central aos grandes meridionais). Depois do ano 1500 d.c., quando Colombo abriu todo o mundo à expansão europeia, segundo a estimativa de Murdock, talvez somente 15% da superfície da terra estava ainda ocupada por caçadores e colectores. Não restavam mais povos caçadores, colectores ou forrageadores na Europa ou nas áreas do Mediterrâneo. (...) A África tinha-se tornado completamente pastoriadora e agrícola com excepção dos nativos bosquímanos, dos pigmeus do Congo e de alguns outros grupos dispersos. (...) Não se deve enfatizar nenhuma das categorias de técnicas de existência como absolutamente exclusivas. Todas as economias de subsistência são mistas em grau maior ou menor. Os horticultores são ainda caçadores e pescadores. Os pastores fazem incursões ou trocam carne por farinha. Mesmo uma sociedade atómica, industrializada como anossa, inclui a agricultura, o pastoreio, a pesca, a caça, nas suas actividades. Quando identificamos uma economia de subsistência como agrícola ou pastoril queremos apenas dizer que esta é a fonte predominante de alimento.

Evidentemente, dum ponto de vista biológico, comida é energia. Assim o que queremos dizer é que é essencial compreender as fontes de energia para compreender as sociedades humanas. O antropólogo Marvin Harris identificou três elementos básicos presentes em todas as sociedades humanas: infra-estrutura (que consiste nos meios de obter e produzir a energia necessária e os materiais, a partir da natureza – ou seja, os meios de produção); estrutura (que consiste na tomada de decisões entre os homens e na actividade de repartição dos recursos); super-estrutura (que consiste nas ideias, rituais, éticas e mitos que servem para explicar o universo e coordenar o comportamento humano). As alterações em cada um destes níveis podem afectar os outros: o aparecimento duma nova religião ou duma revolução política, por exemplo, pode mudar a vida das pessoas de forma real e significativa.
No entanto, o facto de que tantas formas culturais pareçam agrupar-se consistentemente em torno da forma de obter os alimentos, sugere que a mudança cultural fundamental ocorre a nível da infra-estrutura: se as pessoas mudam, por exemplo, da caça para o plantio, ou do plantio para a pastorícia, a sua política e espiritualidade também acabam por mudar e provavelmente de forma profunda. Passando agora à breve análise de Ethnicity, Hunter-gatherers and the “Other” Association or Assimilation in África, vemos que é um conjunto de onze artigos que resultaram do trabalho realizado por vários autores acerca das questões relacionadas com os povos caçadores-recolectores africanos, tendo como tema principal as problemáticas da etnicidade e da cultura numa época e num contexto actual. Trata-se de um livro com um conteúdo muito interessante nos seus vários capítulos, e que pode ser abordado de duas formas diferentes mas que se completam: por um lado, pela sua contribuição para o aprofundar do debate em torno das diferentes concepções que vários estudiosos têm afirmado acerca da realidade histórica dos povos caçadores-recolectores, e por outro, pelo facto de nele se revelar a transição dinâmica que ocorre neste momento nas sociedades caçadoras-recolectoras africanas, onde o papel da identidade dos grupos se assume como a chave para se investigarem as influências que o «Outro» tem exercido sobre estes grupos ao longo dos tempos.
No livro é nítida uma preocupação em desmontar certos preconceitos e metodologias de pensamento, bem como de certas teorias, como é o caso da perspectiva defendida por alguns antropólogos revisionistas, à luz de dados actuais, colocando deste forma em questão o real desaparecimento da cultura dos povos caçadores-recolectores sul africanos, através de um exercício explicativo e demonstrativo acerca da vulnerabilidade de certos grupos à assimilação de outras culturas com as quais mantêm um determinado contacto.
Assim sendo, o tema central do livro baseia-se também na discussão das fronteiras interculturais dos caçadores-recolectores. Só a título de exemplo, podemos afirmar que os aborígenes da Austrália, durante mais de 40 mil anos, até à nossa época, conservaram uma estabilidade e continuidade de estilo de vida nómada baseado na caça e recolecção. Não se tornaram agricultores ou domesticadores de animais. Mantinham contactos com populações da Nova Guiné, mas nem por isso adoptaram a agricultura por sementeira. Não lavravam a terra, mas utilizavam técnicas hortícolas, replantavam inhames e outros tubérculos, estimulavam o crescimento de árvores de fruto. Exploravam frutos secos tóxicos, da família das cicadáceas. Estes frutos, depois de extraído o veneno, eram moídos para a preparação duma espécie de farinha, com que era produzido, por fermentação, um “pão de cicadácea”. O fogo era utilizado como forma de aumentar a produção de alimentos, através da prática da agricultura de queimadas para encorajar o crescimento de plantas alimentares, regenerar as matas, aproveitar as cinzas como adubo e atrair os animais herbívoros para a sua captura. Estes eram, então, mais facilmente mortos à paulada ou com lanças. Tais caçadores não conheciam o arco e a flecha. As suas deslocações contínuas por regiões extensas, permitia-lhes uma recolha ampla de alimentos que ultrapassava as carências de forma mais eficaz do que com uma agricultura, difícil num terreno tão seco e dependente de fontes muito mais restritas. Não produziam excedentes alimentares nem armazenavam. No entanto, havia uma produção de utensílios e ferramentas essenciais, de vestuário de pele e confecção de adornos, semelhante à ocorrida noutros continentes.
Outra das questões interessantes emergentes no livro e que mereceu uma grande atenção por parte dos seus contribuidores é o uso e a definição do conceito de etnicidade e de grupo étnico para explicar de forma valiosa as controvérsias acerca da natureza dos povos caçadores-recolectores, e da sua interacção com os outros. Para além disso, é-nos apresentado uma série de indagações retóricas que questionam o leitor, obrigando-o a reflectir sobre estes assuntos, uma vez que, colocando dúvidas pertinentes, somos conduzidos através dos vários autores, a uma melhor avaliação dos dados apresentados pelas diferentes investigações até hoje efectuadas.
Importa também dizer que devido ao carácter inter-relacionável dos diferentes capítulos, a leitura poderá ser mais útil se for conduzida de uma forma não linear, sendo por vezes necessário voltar atrás na leitura, saltar algumas páginas, ou então pesquisar noutros livros as várias obras citadas, de modo a ter uma compreensão global, completa e abrangente sobre determinados assuntos referidos pelos autores, tendo como objectivo relacionarmos de forma complementar a quantidade de informações disponíveis para análise.
Entre muitas das interessantes questões levantadas por esta obra, ressaltam várias que merecem a nossa atenção particular, como por exemplo: o porquê da especificidade social e comportamental dos bandos de caçadores-recolectores do Kalahari, pois ao contrário dos seus congéneres da África Central, estes não são vistos por alguns estudiosos como um povo completamente caçador-recolector; a validade da perspectiva emic/etic para o denvolvimento de uma antropologia que melhor compreenda o discurso dos «nativos» e dos antropólogos, onde, todavia, e como diz Norbert Elias na “Sociedade dos Indivíduos”: talvez os nossos instrumentos de pensamento ainda não são suficientemente flexíveis para que os fenómenos de interdependências se possam tornar completamente compreensíveis.
Prosseguindo nas indagações dos autores deste livro, vejamos a estereotipagem dos colonizadores imperiais destes povos, e o papel desempenhado pelos povos agro-pastoris na mudança sócio-cultural dos caçadores-recolectores; a dismistificação da realidade vivida pelos povos caçadores-recolectores sul-africanos agora extintos, bem como a identificação de muitos preconceitos ocidentais aquando da análise da geografia física e humana da região sul-africana; a chamada de atenção para o facto de que o contacto ou associação entre diferentes povos nem sempre resulta numa aculturação ou assimilação de traços culturais; a noção de que foi o europeu o elemento catalisador das maiores transformações nos contactos multiculturais entre os habitantes do sul de África e da sua colonização; a afirmação da necessidade de nos afastarmos das concepções ideológicas ocidentais e dos preconceitos dos povos agro-pastoris (neste caso os Bantu), em relação aos bandos de caçadores-recolectores, de modo a que, sem generalizar acerca de uma cultura, se possa observar as fronteiras culturais de cada povo, e desta forma compreender um pouco melhor as verdadeiras diferenças entre o «Eu» e o «Outro», pois a identidade cultural aparece como uma modalidade de categorização da distinção nós/eles, assente na diferença cultural. A identidade se constrói e reconstrói constantemente no quadro das trocas sociais. Não há identidade em si, nem sequer unicamente para si. A identidade é sempre uma relação com o «outro». A identidade é sempre um compromisso, ou poderíamos dizer que uma negociação, entre uma «auto-identidade» definida pelo si-próprio e uma «hetero-identidade» ou «exo-identidade» definida pelos outros. A identidade é, portanto, uma parada de lutas sociais. Nem todos os grupos têm o mesmo «poder de identificação», porque o poder de identificação depende da posição ocupada no sistema de relações que liga os grupos uns aos outros.Se a identidade é tão difícil de captar e de definir, é precisamente devido ao seu carácter multidemsional e dinâmico. A identidade surge como um meio visando atingir um fim. A identidade não é, portanto, absoluta mas relativa.A análise de Barth permite escapar à confusão tão frequente entre «cultura» e «identidade». Participar em certa cultura particular não implica automaticamente ter certa identidade particular. A identidade etnocultural utiliza a cultura, mas só raramente toda a cultura. Uma mesma cultura pode ser instrumentalizada de maneira diferente, ou até mesmo oposta, em diversas estratégias de identificação.
Segundo Barth, a etnicidade, que é o produto do processo de identificação, pode ser definida como a organização social da diferença cultural. Para explicar a etnicidade, o que importa não é, portanto, estudar o conteúdo cultural da identidade, mas antes os mecanismos de interacção que, utilizando a cultura de modo estratégico e selectivo, mantêm ou repôem em causa as «fronteiras» colectivas.
Outra questão interessante levantada neste livro é a importância da problemática da interpretação não-crítica de dados fora de contexto na análise das informações recolhidas acerca destes povos, que poderá mesmo conduzir ao enviosamento do estudo e à invalidade das interpretações antropólogicas (ver por exemplo Wilmsen 1989, Dinbaus 1990, Silberbower 1981, Tanaka 1980), ou então atentemos nesta passagem do Professor Doutor Luís Batalha:

Se a antropologia não incorporar seriamente um discurso etic/mental e etic/comportamental, não terá capacidade de competir com outras ciências sociais (...). Ou seja, a diferença entre o que (as pessoas) dizem que fazem e o que elas realmente fazem. Trata-se de um exercício antropológico nem sempre fácil, mas muito interessante. Infelizmente, na epistemologia pós-moderna, não há lugar para a distinção emic/etic, pois tudo não passa de uma «retórica» que apenas visa credenciar o etnógrafo com uma «autoridade científica» a que ele não tem direito. Mas sem qualquer espécie de autoridade, e sem qualquer referencial de avaliação do trabalho etnográfico, como é que o trabalho do antropólogo pode ser julgado?

Para além disso, as provas arqueológicas até hoje apresentadas servem de testemunho de traços culturais que revelam ou poderão indicar assimilação ou escravatura destes povos, pondo em xeque os argumentos a favor de que as sociedades mais simples sucumbem sempre face a sociedades mais complexas. Com efeito, a ideia de que os povos caçadores-recolectores são subservientes face ao «Outro», não vem do artefacto em si, mas antes das interpretações pessoais de alguns arqueólogos.
De facto, muitos antropólogos ocidentais tendem a assumir que os povos não ocidentais são muito passivos e recepientes das culturas ocidentais, confundindo diversas vezes as mudanças no comportamento como mudanças na identidade, o que, como Susan Kent salienta, só poderá conduzir a más reconstruções do passado e do presente das interacções dinâmicas entre as diferentes culturas do sul de África. Como o Professor Doutor Luís Batalha afirma:

Não é a incapacidade dos grupos «primitivos» marginais para adoptarem um modo de vida moderno (ou pós-moderno) que os faz manter o seu modo de vida tradicional. Eles resistem à mudança porque acreditam que o seu modo de vida «primitivo» é melhor do que a «civilização».
Um outro aspecto interessante e desenvolvido neste livro é a formação das identidades em contextos específicos e ao longo da história, e a forma como no passsado o etnocentrismo moldou as mentalidades e o comportamento de muitos indivíduos. De facto, o medo do «Outro», do diferente é uma atitude frequente em todo o mundo animal. A sua vantagem selectiva numa espécie ameaçada por predadores parece evidente. Mas, no homem, um tal comportamento apenas pode subsistir se for alimentado ou reforçado pela educação e pela aprendizagem. O conhecimento das diferenças e a aprendizagem pelos contos, os mitos e o diálogo do seu significado biológico deveriam ser elementos essenciais de uma educação social bem concebida. Não é por acaso, mas por igonrância, que as populações que não conhecem outras apresentam muitas vezes «reflexos» racistas aquando dos primeiros contactos. Também não é por acaso que os diabos são vermelhos ou negros nas populações europeias colonialistas e brancos nos descedentes das vítimas da escravatura. A persistência de tais mitologias é sem dúvida uma das causas principais da predisposição ao racismo de numerosas sociedades contemporâneas. Ela deveria ser um tema de reflexão e de acção para os educadores e para todos os que escrevem para ou contam a crianças, que são muito fáceis de impregnar[1].
Após a leitura deste livro, podemos compreender que a maioria dos caçadores-recolectores apresentam um padrão de flexibilidade e relativa igualdade na organização dos seus bandos por todo o globo. A sua flexibilidade e mobilidade têm servido tanto a seu favor como em seu prejuízo: nas situações de fome ou guerra, sempre tiveram a possibilidade de recorrer à floresta ou ao deserto, sobrevivendo «fora do sitema». Contudo, a sua falta de hierarquia tem significado que aquando da pressão política ou militar de grupos externos, estes povos não têm conseguido resistir facilmente, fazendo-nos pensar que mais cedo ou mais tarde terão sucumbido ao domínio dos outros.
No entanto, convém também contextualizar este livro num panorama teórico e de produção científica mais alargado. De facto, à medida que a humanidade dá os seus primeiros passos neste novo milénio, importa distinguir as várias correntes de investigação acerca dos povos caçadores-recolectores no presente, no passado e também para o futuro: primeiramente, a visão clássica continua a interessar muitos estudiosos, que procuram encontrar, com base em pesquisas arqueológicas, registos que sustentem as suas perspectivas neo-marxistas das dinâmicas sociais e ecológicas internas dos povos caçadores-recolectores. Um dos melhores exemplos das investigações clássicas é a de Robert Kelly (1995) “The Foraging Spectrum”. A perspectiva adaptacionista enquadra-se na área da ecologia comportamental e da teoria de forragem óptima, sendo os estudiosos desta área os «advogados» de paradigmas estrictamente científicos no estudo dos caçadores-recolectores. Alguns exemplos: Hill e Hurtado (1995) e Smith e Winterhalder (1992). A perspectiva revisionista, a qual é amplamente criticada neste livro, é de uma escola de pensamento que argumenta que os povos conhecidos como caçadores-recolectores não passam dos vestígios remanescentes de modos de vida passados, substractos de povos mais desenvolvidos ou do contacto com a modernidade. Alguns exemplos: Schrine (1984) e Wilmsen (1989). Por último, a perspectiva «nativista» ou «indígena», advoga a abordagem dos objectos e aspirações dos povos estudados no centro da discussão, e representa o resultado da busca por uma antropologia comprometida e científicamente mais responsável pelo seu objecto de estudo, o que levanta muitas questões de foro ético, bem como uma acesa polémica acerca da manutenção do equilíbrio entre o rigor científico e uma obrigação conservacionista dos povos em estudo, como por exemplo em Nicolas Peterson (1991) “Cash, Commodatization and Changing foragers, Eugene Hunn (1990), Joe Jorgensen (1990), Basil Samson (1980), Janet Siskind (1980) e Polly Wiessner (1982).
Como é sabido, em certas zonas do globo, permanecem algumas populações que ainda não ultrapassaram o modo de produção baseado na caça e recolecção e outras mantêm-se na fase inicial da produção agrícola. Em diversas regiões africanas, antes do aparecimento dos europeus, as famílias produziam a sua alimentação, plantando e criando gado, construindo as suas cabanas e manufacturando o seu próprio vestuário e utensílios domésticos. Certos artefactos eram trocados pelos artesãos por produtos agrícolas.
Na África Subsariana, os colonizadores encontraram tribos nativas que viviam de criar gado, plantar cereais e da caça selvagem. A agricultura de subsistência foi então desmantelada e a velha auto-suficência desmoronou-se. Os colonizadores europeus eliminaram a produção de alimentos e arruinaram a agricultura nativa, em benefício das suas plantações de produtos destinados ao mercado. Em muitos países africanos, as classes sociais começaram a formar-se já depois do derrube do colonialismo, nos meados de século XX. Em certas regiões este processo ainda não se concluiu.
Em tempos ainda muito recentes, os pigmeus da zona oriental do Zaire limitavam-se a recolher os seus produtos que trocavam com os grupos vizinhos que se dedicavam ao cultivo e cuidavam das manadas. Na África Oriental a par de estilos de vida assentes no pastoreio e na agricultura mista continua a existir a prática da colheita de plantas e da caça como base alimentar. Na África Austral, formas de vida baseadas na caça e recolecção perpetuaram-se com poucas mudanças até à segunda metade do século XIX. A comida ainda era levada para os agrupamentos onde era partilhada. Os grupos étnicos que vivem na extremidade norte do Globo detiveram-se no estado primitivo do seu desenvolvimento. A explicação teórica liga-se às condições naturais demasiado rigorosas. A única forma de produção era a caça, a pesca e a criação de renas, formas de produção na base das quais é impossível desenvolver intensamente as forças produtivas e as formas sociais respectivas. As condições naturais garantiam ao homem a possibilidade de manter a sua existência mas não estimularam o desenvolvimento activo da força produtiva do seu trabalho.Nalguns casos caçadores permanecem ainda na actualidade, em extremo isolamento, evoluindo muito lentamente, em condições de grande rudeza.
A evolução da sociedade recolectora é muito lenta e a transição para a economia agrícola e pastorícia processou-se em épocas e regiões muito distintas, ao longo de milénios, mas sempre sob formas semelhantes na sua evolução. Em certas regiões do globo mantiveram-se grupos de caçadores recolectores em áreas inadequadas para a criação de gado e agricultura, vivendo em simbiose com os camponeses das regiões vizinhas. Algumas destas populações perpetuaram os seus costumes ancestrais até aos dias de hoje. Em regiões tropicais, com escassa população humana, ricas em produtos alimentares, as populações não se sentiram motivadas para alterar a tradição da caça e da simples recolha dos frutos da terra. Com uma vegetação luxuriante, as pessoas escavam a terra e dela tiram um tubérculo, apanham um cacho de bananas de uma árvore, que se multiplica naturalmente, sobem a uma palmeira para pegar um coco, cujo leite bebem e cuja polpa comem. A riqueza do bioma em áreas naturais é tal que põe em causa as vantagens do pastoreio e da agricultura. A caça e a recoleccção proporcionam aí um nível elevado de nutrição com menor dispêndio de tempo e de esforço físico. Esta forma de vida perpetuou-se, em algumas regiões, com poucas mudanças, até tempos muito recentes.
No entanto, são inúmeros os exemplos de recolectores a viverem em estreito contacto com povos agricultores sem adopção da agricultura. Alguns grupos de recolectores, ocupando ainda regiões extremamente vastas, encontravam-se tão bem integrados no seu ambiente natural, que ainda não sentiam a necessidade de se adaptar ao modo de produção alimentar, nem a necessidade de armazenar alimentos além dos de consumo imediato ou durante as estações do ano.
Tribos houve que abandonaram a actividade exclusivamente agrícola e decidiram-se por métodos alternativos para a sua subsistência e outras conservaram o modo de vida nómada, dedicando-se de forma preponderante à criação de animais. Nas estepes a transição para a criação permanente de gado dava os primeiros passos. Continuaram a existir espaços isolados, verdadeiras ilhas de caçadores e recolectores, que sobreviveram às mudanças e permaneceram em zonas caracterizadas por uma grande concentração de vida selvagem, onde não havia necessidade de recorrer à agricultura para garantir a subsistência.
A barreira do deserto do Sara constituiu um obstáculo à passagem das populações numa altura em que começava a desenvolver-se uma agricultura sedentária na África do Norte. A dificuldade no estabelecimento de contactos humanos viria a influenciar o curso da evolução na África Subsariana, onde o estilo de vida baseado na caça e na recolecção permaneceu bastante imutável até à chegada de povos produtores de alimentos já nos séculos próximos do início da era cristã. Além disso, a riqueza dos recursos alimentares das regiões de savana associada à escassa população não estimularam o cultivo de plantas ou a criação de gado. As formas de vida baseadas na caça e na recolecção perpetuaram-se, com ligeiras mudanças até tempos muito recentes. Em algumas regiões surge a prática duma economia mista em que, a par de um tipo muito rudimentar de produção alimentar, aparece a produção de artefactos de cerâmica ou de pedra polida.
Na África Austral comunidades de recolectores partilharam a savana com as populações de agricultores e pastores, estabelecendo relações de mútuo benefícioEm algumas áreas foi presenciada a existência de sociedades complexas que evoluíram com base numa combinação de produção alimentar e recolha especializada de alimentos. Há conhecimento histórico de ter ocorrido, em algumas regiões, uma longa sucessão de colheitas ruinosas que forçaram a dispersão das aldeias e o regresso temporário das populações ao estilo de vida baseado na caça e na recolecção.
A civilização ocidental, na modernidade, empenhou-se em desenvolver equipamentos mecânicos cada vez mais eficientes. Adoptando este critério, é forçoso aceitar que a quantidade de energia disponível por habitante seja um indicador razoável do nível de desenvolvimento das sociedades humanas. Mas se elegermos outro critério – por exemplo o da adaptação a condições ambientais extremas –, outras sociedades tomariam a dianteira. No mesmo sentido, Wallerstein (1998), reconhecendo as dificuldades na análise do progresso devido ao carácter unilateral de todas as medidas propostas, afirma:

Diz-se que o progresso científico e tecnológico é inquestionável, o que é certamente verdade, em especial na medida em que a maioria do conhecimento técnico é cumulativo. Mas nunca se discutiu seriamente sobre a quantidade de conhecimento perdido, por via da vassourada mundial imposta pela ideologia universalista.

Examinando as condições de vida das forças de trabalho, Wallerstein (1998) conclui que a maioria delas vivem em zonas rurais ou movem-se entre estas e os bairros-de-lata das periferias urbanas, estando piores do que aquelas que viviam há cinco séculos atrás. Para além de duvidar que a esperança de vida à idade de um ano seja maior do que anteriormente e de terem uma dieta alimentar inferior, para garantirem a sua reprodução elas trabalham mais arduamente e durante mais horas por dia, por ano e por vida, pelo que a taxa de exploração aumentou significativamente.
Conferindo solidez a este argumento, Wallerstein (1974) mostra, citando os arquivos ingleses da época, que na Idade Média um dia de trabalho na agricultura estava compreendido entre o nascer do sol e o meio-dia. Continuando a medir o bem-estar com base no critério do tempo de trabalho, a nossa situação actual é mais desfavorável, quando comparada com aquela que usufruem os povos que vivem, ainda hoje, e em condições incomensuravelmente mais adversas do que os seus antepassados remotos, da caça e da recolecção.
Como esclarece Harris (1987), baseando-se nos trabalhos de Lee, o tempo médio diário despendido por um adulto bosquímano !kung ronda as seis horas. Mais, se considerarmos, tal como faz Sahlins (1972), que uma sociedade é de abundância quando todas as necessidades materiais dos indivíduos que dela fazem parte são facilmente satisfeitas, então, teremos de concluir que o progresso falhou, também aqui, retumbantemente. Observando que pelo menos um terço da humanidade termina o dia de barriga vazia, Sahlins (1997) conclui que o tempo da fome sem precedentes é o nosso. Ou seja – insiste o autor –, no tempo do progresso técnico vertiginoso, a fome tornou-se uma instituição.
Em termos sistémicos, (Wallerstein 1998) considera que a ideia de progresso justificou toda a transição do feudalismo para o capitalismo. Ela justificou a quebra da remanescente oposição à mercantilização de tudo, e tendeu a subvalorizar os aspectos negativos do capitalismo, com a justificação de que os benefícios ultrapassavam, de longe, os prejuízos.
Embora sentindo o «tremor que acompanha a sensação de blasfémia», Wallerstein (1998) sustenta que o capitalismo, como sistema histórico, não representou progresso em relação aos vários sistemas históricos anteriores que foram por ele destruídos ou transformados. Estudos comparativos das sociedades humanas têm mostrado consistentemente que estas últimas são mais bem classificadas quanto aos meios de obtenção de alimentos dos seus membros. Assim, falamos vulgarmente de sociedades caçadoras-recolectoras, sociedades hortícolas, sociedades agrícolas, sociedades piscatórias, sociedades pastorícias e sociedades industriais. A questão é que, se soubermos como é que as pessoas obtêm os seus alimentos, ficaremos certamente aptos a predizer a maior parte das suas restantes formas sociais – os costumes de tomada de decisões e de educação infantil, as práticas espirituais e por aí fora. Na verdade, os povos caçadores-recolectores podem muito bem ensinar-nos alguma coisa, não só a propósito dos modos de vida ancestrais, mas também acerca do futuro do Homem. Para que a tecnologia humana sobreviva ela terá de aprender os segredos da longevidade a partir dos seus companheiros humanos cuja forma de vida existe há muito mais tempo que a civilização industrial e comercial. Como Burnum Burnum[2] uma vez disse:

A ecologia moderna pode aprender muito junto das pessoas que conseguiram manter e preservar tão bem o seu mundo durante 50000 anos.

A verdade é que a rígida divisão entre os universos da natureza e da sociedade das coisas e das pessoas traçados pela ciência e ideologia ocidentais não se aplicam aos povos caçadores-recolectores. Para estes não existem dois universos, mas apenas um, que abarca todos os seres que dele fazem parte (ver Ingold 1982). Longe de procurarem um controlo sobre a natureza, o seu objectivo é o de manter relações adequadas com estes seres (Ridington 1982). É claro que existem tantos tipos de relações como há diferentes tipos de indivíduos, mas a questão mais importante é que as diferenças são vistas como relativas, e não como absolutas. E se não existem fronteiras absolutas que separam as relações sociais das que não são, então para que serve, afinal de contas, o nosso conceito social aplicado a outros povos?
É verdade que este novo milénio tem sido palco do encapsulamento destes grupos em estruturas administrativas deste ou daquele Estado, e dada a sua trágica história de aculturação forçada, poderíamos presumir ou supôr que os anos vindouros encerrarão um último capítulo na história destes povos. Mas será que irão mesmo desaparecer? Eu não acredito. Os povos caçadores-recolectores vivem ainda, não só nas páginas dos textos antropológicos e históricos, como também existem de facto, físicamente, em 40 países, na presença de centenas de milhares de descendentes separados por apenas uma ou duas gerações, sendo que estes indivíduos e os seus apoiantes estão neste preciso momento a criar uma forte voz internacional para os povos indígenas e os seus direitos humanos. É pois nosso dever ouvir esta voz, até porque, como podemos observar no eloquente livro de Jack Weatherford (1994) “Savages and Civillization: who will survive?”, é-nos traçado uma longa tradição intelectual desde Rousseau onde, contemplando os horrores do mundo moderno, o autor levanta a interessante questão sobre quem são os povos verdadeiramente civilizados: os «selvagens» com os seus ocasionais derramamentos de sangue, ou os «civilizados» que trouxeram ao mundo a Inquisição, a escravatura comercial, a metralhadora, o napalm, as bombas de Hiroshima e o holocausto nazi? E apesar da convicção triunfante do progresso, por via da ciência e da tecnologia, esta ideia está também ela sujeita a crescente contestação. Constatando, entre outros aspectos, que a degradação do ambiente e a eliminação em massa de seres humanos só foi possível devido ao progresso da ciência e da tecnologia, Taplin (1990) interroga-se:

Até que ponto será bom para a humanidade este inexorável e acelerador avanço da ciência e da tecnologia?

Para finalizar, podemos dizer que este livro não é apenas mais um conjunto de palavras ocas e irrelevantes, pelo contrário, trata-se de uma obra que vem lançar um novo debate acerca do mundo dos povos caçadores-recolectores. Entretanto, e embora não sendo a opinião expressa pelos autores do livro, julgo que podemos dizer que os mais radicais dos tecno-críticos foram buscar inspiração à tendência para o relativismo cultural que convenceu os antropólogos dos meados do século XX, tais como Stanley Diamond, que manifestou profunda admiração pelos caçadores-recolectores que ainda restam no mundo. Para o filósofo anarco-primitivista John Zerzan, toda a tecnologia é prejudicial, perversa, destrutiva, e degradante, e só um regresso à nossa condição primitiva, pré-linguística, pré-técnica nos permitirá recuperar inteiramente a nossa liberdade e espontaneidade inatas. No pior dos casos, o ideal de Zerzan de regresso à caça e à recolecção talvez se realize – não por escolha moral, mas pelo cruel destino.



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Fontes documentais:

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RELATÓRIO SOBRE O DESENVOLVIMENTO MUNDIAL 2000/2001: LUTA CONTRA A POBREZA in www.worldbank.org/poverty/wdrpoverty/report/Poroverv.pdf (28 de Outubro de 2000).
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[1] Impregnar é aqui uma referência à teoria da impressão dos etologistas, demonstrada por Konrad Lorenz nos pássaros e reencontrada, em modalidades muito diferentes, nos mamíferos. Segundo esta teoria, é muitas vezes nos primeiros momentos de vida (horas, meses, anos, segundo o caso) que um animal aprende a reconhecer o «objecto» em relação ao queal irá desenvolver mais tarde comportamentos (filial, sexual, aversivo...), apesar de muitas vezes ele ser ainda capaz de os produzir.

[2] Aborígene australiano professor, escritor e humanista.

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