P E R S P E C T I V A S

Para uma crítica do Conhecimento nas sociedades pós-modernas

30.4.06

No turbilhão dos lugares públicos e privados

«A casa é um segredo. Um segredo e uma certeza, a de saber
que o segredo estará bem guardado. Uma casa é sempre
mais do que um alojamento, é uma habitação e uma cumplicidade.»

Thierry Paquot, L’Archicteture et L’ Exclusion


Como o autor muito bem coloca, eis a questão essencial para este capítulo: como arbitrar interesses gerais de escalas diferentes? A uma evocação do espaço público associamos, vulgarmente, uma imagem de urbanidade. Contudo, a sua relação com a cidade é, de certo modo, ambígua, dado que são, simultaneamente, entidades físicas distintas e elementos espacialmente íntimos.

Enquanto que a cidade se apresenta, aos olhos dos seus habitantes, como uma realidade concreta, somatório de edifícios, equipamentos e infra-estruturas, o espaço público representa, numa acepção corrente, a materialização do seu inverso, isto é, a ausência de concretização física. Contudo, a noção de espaço público não é uma negação da cidade, pelo contrário, representa a afirmação da sua existência. Na ausência de edificação, corporiza-se a presença das pessoas que a habitam; na sua configuração espacial contida e delimitada pelo seu edificado, vive-se a dinâmica e o movimento das acções que a caracterizam.

Por ser um espaço eminentemente social, é também espaço de representação, no qual a sociedade se faz visível. Será assim possível lêr e compreender no espaço público, a expressão do fervilhar de forças que habitam a cidade. Todavia, ao tentar efectuar uma leitura destas dinâmicas, não obtemos uma imagem clara e definida. A cidade tornou-se numa entidade, cuja escala e complexidade torna difícil definir qual o seu real papel e natureza.

Impulsionada por novas formas de expansão e urbanização crescentes, assistimos progressivamente, a uma mudança na escala da cidade, que sai do seu quadro espacial tradicional, dissolvendo-se pelo território e transformando-se tendencialmente numa massa fragmentada. De facto, na obra de Ascher, julgo que estamos perante um modelo de desenvolvimento urbano, que alimenta uma ideia de cidade-somatório de tecidos soltos, acessos viários e acumulações comerciais, onde o fenómeno da metropolização se tornou numa realidade urbana inegável.

Deste modo, os espaços produzidos pelas dinâmicas contemporâneas, sejam denominados de áreas metropolitanas, de cidades-regiões ou metrópoles, são, acima de tudo, a construção de um novo tecido urbano, simultaneamente, extenso e descontínuo, espacial e funcional, resultado da adição de uma multiplicidade de “não-lugares” e de elementos dispersos.

Encontramos esta visão tanto na megalópolis de Jean Gottmann, como na metapolis de François Ascher, na metropólis fracturada de Jonathan Barnett, na cidade difusa de Francesco Indovina, na City of Quartz de Mike Davis, na Edge City de Joel Garreau, tal como na multiplicidade de reflexões que surgem actualmente sobre a evolução da forma da cidade. O que encontramos de comum em todas estas perspectivas é a afirmação de uma estratégia urbana de construção de um novo território urbanizado, distinto de uma entidade que denominamos cidade. Uma cidade exige territórios articulados, lugares com capacidade de serem centralidades integradoras, polivalentes e constituídos por tecidos urbanos heterogéneos, tanto social como funcionalmente.

Afastando-se da vida pública, o cidadão converte-se em consumidor, e a vida urbana num simples produto imobiliário. Assistimos, deste modo, a uma progressiva degradação física e simbólica dos espaços urbanos, pois apesar das “habituais intervenções estéticas redentoras” sobre os espaços públicos dos centros históricos – que apesar do seu simbolismo representam actualmente, uma fracção cada vez mais pequena do território urbano – todos os outros espaços da cidade se fecham sobre si e se esvaziam de sentido.

Reforçada pelas dinâmicas poderosas do urbanismo de produtos, pela submissão ao mercado imobiliário e pela força económica da especulação privada, sentimos progressivamente a sintaxe dos objectos-mercadoria a substituírem a cidade do intercâmbio e da diversidade. Será assim, entre a proliferação e a banalização do automóvel individual, entre o êxito dos condomínios privados e dos complexos habitacionais desligados do restante tecido urbano, que encontraremos uma cidade contemporânea com uma tendência para a progressiva privatização dos seus domínios públicos.

Perante um panorama em que a esfera privada penetrou em todas as dimensões da imagem e da cultura urbanas, é já difícil encontrar as fronteiras entre os territórios e as esferas públicas e privadas da cidade. Encontramos os sinais desta gradual mutação, em fenómenos tão diversos como o crescente número de condomínios fechados; as concessões privadas de largos e praças a parques de diversões, esplanadas ou demonstrações comerciais; as parcerias entre entidades públicas e privadas para a construção de jardins ou arranjos urbanísticos, associados frequentemente à exploração privada de parques de estacionamento a eles agregados; na parafernália de outdoors e equipamentos urbanos que funcionam enquanto suportes comerciais; nos anúncios debitados pelas televisões e écrans presentes cada vez mais nos transportes e espaços públicos urbanos; ou mesmo em fenómenos de maior dimensão como a construção de cidades simuladas dentro da própria cidade, como os parques temáticos, os festivais de rock ou as cidades empresariais.

Este modelo de construção de cidade retira o domínio público das suas prioridades, e potencia a afirmação crescente do sector privado. A esfera pública perde progressivamente o seu papel de elemento estruturador das rotinas urbanas, enquanto que o espaço público urbano representa, em muitos casos, apenas um espaço residual entre edifícios e vias.

Reflexo de uma extensa crise de valores, identificamos em muitos novos comportamentos colectivos uma evidente “agorafobia”, decorrente de um medo ou desconforto na utilização do espaço público, dado que este não é reconhecido como um espaço protector, nem como um espaço protegido. Isto é, não proporciona segurança ou apresenta utilidade a um conjunto alargado de indivíduos. Em alternativa, observamos como, nos grandes centros urbanos, estão repletas as ruas e as praças cobertas dos centros comerciais e como se fecham as ruas de acesso aos bairros ou condomínios privados. Aqui encontramos uma nova urbanidade, novos hábitos e novos usos.

Num espaço que oscila entre a propriedade privada e o uso colectivo, encontramos uma envolvente onde tudo está organizado, o ambiente e a temperatura estão controlados, onde os nossos passos estão vigiados e onde se as pessoas se sentem seguras, apesar de ser – ou talvez por este ser – um local onde a ideia de interacção autêntica entre os cidadãos desapareceu por completo.

Enquanto conceito descritivo, a cidade evoca o domínio do construído sobre o não construído, a densidade populacional e do habitat. Esse espaço construído assenta numa diversidade de oposições: cidade versus não cidade; centro versus bairros; espaços privados versus espaços públicos. Assim, encerra sobretudo uma visão morfológica, e assume-se como lugar da plurifuncionalidade.

Olhada como conceito interpretativo, a cidade refere-se sobretudo à existência de uma grande imbricação entre a apropriação do espaço e a emergência de uma dinâmica colectiva, isto é, a cidade é privilegiadamente o lugar onde os vários grupos, embora permanecendo distintos uns dos outros, encontram entre si possibilidades múltiplas de coexistência e de trocas mediante a partilha de um mesmo território, o que não só facilita os contactos programados, mas principalmente multiplica as hipóteses de encontros aleatórios e favorece o jogo das estimulações recíprocas. Lugar a partir do qual se estrutura o campo das actividades sociais, a cidade também confere uma dimensão sistemática à cultura regional circundante; podendo ser também, pelo contrário, e em certos momentos, lugar de ruptura e de inovação
[1].

[1] Ao encontro deste entendimento parece ir A. Teixeira Fernandes quando refere que, «a construção social do espaço é marcada na cidade, pela centralidade e pela sacralidade. Trata-se de um espaço descontínuo, em correspondência com a própria visualidade do mundo simbólico. É uma representação que resulta de uma apreensão sensorial e imaginética da realidade.»

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