P E R S P E C T I V A S

Para uma crítica do Conhecimento nas sociedades pós-modernas

30.4.06

Uma visão antropológica sobre o que é a cidade

«- E para que serve a cidade, senão para se sair dela no sábado
e no domingo? Para Avandero, como para centenas de milhares de outras
pessoas que se afundam a semana inteira em ocupações cinzentas
para poder escapar ao domingo, a cidade era um mundo perdido,
um moinho para produzir os meios de se sair durante aquelas
poucas horas e depois voltar.»

A nuvem smog, Ítalo Calvino.



São múltiplos os actores, os protagonismos, as estratégias e as políticas. As tensões e contradições operam nessa realidade flutuante e em permanente metamorfose. A cidade contemporânea surge assim como uma verdadeira condensação de projectos e estruturas. Sem sabermos com exactidão onde principia e onde acaba, tacteamos, com metodologias e pontos de vista pluriperspectivados, objectos de análise e de intervenção.

Cidade espectáculo, cidade éclatée, metapolis, cidade genérica, edge city, cidade de quartzo ou fractal, etc. É esta a polissemia de um sujeito-objecto onde se encontram e desencontram as lógicas da própria prática social espácio-temporal, tornada presente nos vários territórios. Mil vezes morta, mil vezes renascida, omnipresente, palco de conflitos, geografia de exclusões, desafio ao planeamento e à acção política, a cidade chama-nos, e cada vez mais. E como diz Kavafis: «A cidade, por onde fores, irá».

De facto, concordo com Ascher quando este admite que a imagem de grandes cidades onde se viveria no reino de uma mistura social completa, quer do ponto de vista social ou funcional, esteja mais associada a uma mitologia de uma comunidade aldeã do que a referências históricas concretas. Com efeito, devemos ter em conta que o crescimento das urbes foi modificando progressivamente a natureza e a escala a que se efectivam as segregações, combinando especializações espaciais, funcionais e sociais, jamais percepcionadas no curso da história. A cidade é também, na sua versão mais simplista, um lugar, e um lugar pode definir-se como lugar de identidade, espaço relacional e histórico; um espaço que não pode definir-se como espaço de identidade, nem como relacional nem como histórico, definirá um não lugar, como propõe Marc Augé. Esta posição radical de análise prende-se com a assumpção de que uma cidade não pode ser considerada unicamente como um conjunto funcional, capaz de gerir e ordenar a sua própria expansão, mas tem de ser assumida como uma estrutura simbólica portadora de um conjunto de sinais e de referências, que permitam o estabelecimento de relações entre a sociedade e o espaço.

É por isso que a formação de uma cidade, neste sentido, implica a produção de um léxico simbólico que caracterize e identifique o quadro imaginário e os valores de referência dos seus habitantes. A dimensão simbólica da cidade não é um facto estranho à vida social e às experiências quotidianas dos seus habitantes, pelo contrário, permite o relacionamento destes numa «dupla hermenêutica». Por um lado, o simbolismo urbano representa um ponto de referência que estrutura e condiciona de muitos modos as actividades sociais, entrando profundamente nos processos que definem as identidades dos actores sociais. Por outro lado, as actividades e as práticas sociais e as constantes interacções desenvolvidas nesse quadro, contribuem para produzir e reproduzir, estruturar e reestruturar a simbologia e a forma urbana.

Enquanto conceito descritivo, a cidade evoca o domínio do construído sobre o não construído, a densidade populacional e do habitat. Esse espaço construído assenta numa diversidade de oposições: cidade versus não cidade; centro versus bairros; espaços privados versus espaços públicos. Encerra sobretudo uma visão morfológica, e assume-se como lugar de plurifuncionalidade.

Se na obra de Ascher, olharmos a cidade como um conceito interpretativo, veremos que ela refere-se sobretudo à existência de uma grande imbricação entre a apropriação do espaço e a emergência de uma dinâmica colectiva, isto é, a cidade é privilegiadamente o lugar onde os vários grupos, embora permanecendo distintos uns dos outros, encontram entre si possibilidades múltiplas de coexistência e de trocas mediante a partilha de um mesmo território, o que não só facilita os contactos programados, mas principalmente multiplica as hipóteses de encontros aleatórios e favorece o jogo das estimulações recíprocas. Lugar a partir do qual se estrutura o campo das actividades sociais, a cidade também confere uma dimensão sistemática à cultura regional circundante; podendo ser também, pelo contrário, e em certos momentos, lugar de ruptura e de inovação
[1].

[1] Como A. Teixeira Fernandes propõe: «A construção social do espaço é marcada na cidade, pela centralidade e pela sacralidade. Trata-se de um espaço descontínuo, em correspondência com a própria visualidade do mundo simbólico. É uma representação que resulta de uma apreensão sensorial e imaginética da realidade».

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