P E R S P E C T I V A S

Para uma crítica do Conhecimento nas sociedades pós-modernas

30.4.06

Perspectivas sobre "Metapolis: acerca do futuro da cidade"

«Toda a cidade, por mais pequena que seja, está com efeito
dividida em duas, uma é a cidade dos pobres, a outra é a dos
ricos: elas estão em guerra uma contra a outra, e em cada uma
delas existem divisões mais pequenas, e passareis completamente
ao lado da questão, se as tratares todas como um único
Estado.»

Platão, República IV



Este livro apresenta, portanto, uma simetria incomum e inquietante: após um século de debates sobre como planejar a cidade, após reiteradas tentativas de pôr ideias em prática, damo-nos conta de que voltamos quase sempre ao ponto de partida. Como acompanhar as mudanças? Como pensar a dimensão da experiência da metrópole a partir de uma simples leitura? Como pensar a relação das pessoas com a cidade e com o mundo?

De facto, julgo que ainda não temos instrumentos analíticos que assegurem uma verdadeira análise científica destas problemáticas. No entanto, a consciência do nosso desenvolvimento é um passo fundamental para podermos pensar a relação das escalas na experiência da metrópole, seus riscos e vulnerabilidades, indo além deste breve comentário, que se limitou a descrever algumas reflexões a partir da minha experiência de leitor, e também de cidadão.

Concordo que é preciso considerar a cidade como complexa e não somente como complicada. Neste sentido, o desafio que se coloca hoje à cidade prende-se com a “capacidade de contrariar as tendências de uma cada vez maior segregação sócio-espacial que o custo dos bens urbanos está a provocar.” Este desafio tem, sem dúvida, uma raiz económica, mas é sobretudo de índole sócio-política “porque o primado da economia está a destruir, cada vez mais a capacidade de convivência sócio-espacial gerando formas altamente segregadas de ocupação territorial.”

A cidade como lugar de realização humana, e, acima de tudo, como centralidade simbólica, parece uma fórmula do passado. É neste sentido que muitas das políticas urbanas, no momento presente, estão mais preocupadas com a qualificação plurifacetada do espaço urbano, ou mais concretamente, com o «fazer cidade por toda a cidade». Indo mais longe, e a acentuar-se esta dicotomia, muitos questionam mesmo a própria cidade e os seus limites e, no extremo, a própria pertinência do termo. A questão é a de estarmos perante uma cidade ou várias cidades, ou perante nenhuma cidade.

Questão relevante, neste eixo, será o próprio reequacionamento das funções urbanas tradicionais, pois há partes da cidade que têm sido votadas a uma monofuncionalidade forçada através de operações de zonamentos funcionalistas e minimalistas, o que leva a questionar o seu próprio papel enquanto partes de um todo urbano que se quer plurifuncional numa pluriformidade de manifestações de urbanidade.

Contudo, ainda há magia no espaço público urbano, e, presumivelmente, na sua criação. A tenuidade em determinar aquilo que faz com que o espaço público se torne um bom espaço para se viver persiste, e continuará a impressionar os olhos de quem investiga, lê, vê e sente a cidade. Um bom espaço público é aquele que capta o olhar e amplia a imaginação, é talvez aquele que não foi desenhado para ser fantástico, mas tão simplesmente, para cumprir a sua função.

É claro que existem tantos tipos de relações como há diferentes tipos de indivíduos, mas a questão mais importante é que as diferenças são vistas como relativas, e não como absolutas. E se não existem fronteiras absolutas que separam as relações sociais das que não são, então para que serve, afinal de contas, o nosso conceito social aplicado às realidades vividas?

Para finalizar, podemos dizer que este livro não é apenas mais um conjunto de reflexões interessantes, pelo contrário, trata-se de uma obra que vem lançar um novo debate acerca do mundo que temos vindo a transformar. Entretanto, e embora não sendo a opinião expressa pelo autor do livro, julgo que até ao momento, não existe nenhuma teoria única da génese e da função da cidade que congregue todos os aspectos significativos da vida da cidade. Estas teorias observam a cidade de pontos de vista bastante diferentes, sendo que alguns pontos de vista específicos estão muito mais evoluídos do que outros.

Não surpreende ninguém ouvir-se que é impossível explicar como é que uma cidade deveria ser, sem se compreender como é que ela é. Talvez seja surpreendente contar o inverso: que a compreensão de como é a cidade depende de uma avaliação de como ela deveria ser. Mas os valores e as explicações parecem-me inextricáveis. A teoria tem várias deficiências. A mais flagrante é a falta de uma teoria complementar acerca do modo como as cidades nascem e funcionam. Por isso, devemos procurar manter uma visão crítica apurada do meio em que vivemos, e observar de forma contextualizada e globalizante, com uma visão das suas partes e do todo, a execução de locais reais para as pessoas que neles vivem.

Não há teoria nenhuma que possa ser considerada madura enquanto não demonstrar de que modo é que a execução tende a variar com o contexto político e social, com a concentração de poder, com a homogeneidade ou pluralidade de valores, com a estabilidade de uma sociedade, com a sua politica económica, com os seus recursos e tecnologia, já para não falar do carácter físico do seu ambiente geral. Deve indicar as posições ao longo das dimensões que provavelmente serão escolhidas. De facto, como é que um poder central rico mas ameaçado, pode sentir-se inclinado a valorizar um determinado aspecto, por exemplo, em comparação com as escolhas dos grupos igualitários pequenos e relativamente pobres? Como se pode observar, é improvável que a teoria possa prever todas as posições tomadas.

Seria no entanto possível esperar que houvesse tendências gerais de variação, devido ao tipo e à situação social. Contudo, os valores também são o resultado do desenvolvimento histórico de uma cultura, não são predeterminados por lei. As dimensões não põem ser estudadas isoladamente, quer do seu contexto social, quer ainda umas das outras. Que elementos são mutuamente independentes de tal modo que a sua execução varia sem afectar outros tipos de execução? Por outro lado, que elementos são mutuamente independentes de tal modo, que a sua execução varia sem afectar outros tipos de execução? Por outro lado, que elementos devem ser sempre modificados em série, ou que elementos estão necessariamente em conflito mútuo?

Embora exigente com os requisitos que uma metapole deve procurar manter, François Ascher levanta mais questões e espaços de dúvida, do que soluções concretas e acabadas acerca destas problemáticas. No entanto, não acredito que o desenvolvimento das cidades catapulte a humanidade para um período de bonança sem fim.

A verdade é que não se pode reparar o futuro, ou aderir de forma inconsciente a uma doutrina populista da mítica sociedade da informação da metapole, onde escasseia não só o sentido crítico, mas também o atrevimento intelectual de se ultrapassar as barreiras dos modelos meramente teóricos, para uma visão prática e efectiva da realização de tão responsável tarefa.

Apanhada entre expectativas crescentes, e uma diminuição de recursos naturais, a nossa sociedade tem de procurar um fluxo ininterrupto de inovação a fim de dar resposta às suas necessidades. E de onde virá esse fluxo de inovação? E a que tipos de arquitectura homem-espaço devemos aspirar para os locais de trabalho do futuro? Parece evidente que tamanho esforço no sentido de uniformidade, engloba normalmente todos os elementos da cidade numa única e totalmente abrangente rede de comunicações francamente utópica.

Mas quando chegaremos ao tempo em que os trabalhos com redes de comunicação de dados humanizam a visão do indivíduo na sociedade urbana? Quando chegaremos ao tempo em que, em vez de lidar com uma multidão de pessoas, cada uma das quais com uma visão parcelar da realidade, todos os indivíduos serão vistos como um único ser humano, com acesso a toda a informação relevante e com poder de actuar sobre essa mesma informação? Estou certo de que darei boas vindas a essa humanização da arquitectura da informação.

Mas nas cidades abundam necessidades inteiramente novas em matéria de habitação, educação e utilização de energia, que ainda mal começaram a beneficiar do impacto das novas tecnologias. Presumo que um projecto global com sentido produzirá uma diferença significativa em algum aspecto do mundo em que vivemos, e fará com que algumas dessas diferenças significativas alcancem uma escala que as leve a todo o globo, e que este será o melhor emprego a dar às mentes e às máquinas que a nossa sociedade pode reunir, mas tal projecto dependerá, de forma conclusiva, da inspiração dos líderes humanos.

Portanto, que provas temos de que a metapolização, para além de prevalecer nas relações económicas e entre instituições, irá construir um novo mundo? Será que as carências e a dominação institucional vão desaparecer nas mandíbulas da metapole? E será possível que as insuficiências sociais e morais dos média actuais venham a desaparecer graças à abundância da informação? Esta visão utópica – a globalização como salvação – é a expressão da antiga aspiração dos ramos libertados das toxinas da história graças ao conhecimento científico, supondo que a sociedade da informação fará de nós seres livres.

Actualmente, as esperanças de que o mundo ligado pelas auto-estradas da informação seja um mundo feliz são, em regra, condicionadas por receios diversos: o nosso sistema de ensino é inadequado, a consciência cívica enfraqueceu, os grupos sociais estão radicalizados e a economia não se encontra estabilizada.

Como se pode ser adepto de um projecto de sociedade que anuncia uma prosperidade eterna sem falhas, quando não existe forma de evitar uma crise profunda da economia global? Na minha opinião, acho que na construção de uma sociedade moderna, hiper-tecnológica e global, as suas inerentes vicissitudes utópicas e virtualidades místicas, nutrem expectativas exageradas em relação à mesma. Talvez se exigirmos um pouco menos, e nos voltarmos ao estudo de alternativas legítimas, consensuais e plausíveis, conseguiremos levar ao campo de discussão um outro projecto, um outro modelo de vida em sociedade no futuro.

Ainda assim, a metapolização, à semelhança de outras ficções globalizadoras, parece que talvez se realize – não por escolha moral, mas pelas vicissitudes inerentes ao desenvolvimento tecnológico das nossas sociedades. Talvez por isso seja quase certo que a cidade do séc. XXI será diferente, e que os grandes desafios dos anos vindouros não serão ultrapassados numa mudança voluntária da organização espacial das cidades.

Mas como sempre na história, as cidades do séc. XXI verão as suas formas testemunhar aquilo que a nossa geração terá sabido fazer para enfrentar esses desafios.

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