Os modelos explicativos da gestão etno-cultural estão a meu ver  ultrapassados, e face ao pessimismo, é preciso cuidadosamente reinventar  novos mitos que encarnem o espírito de desenvolvimento e progresso que  tanto queremos e precisamos. A força anímica de um povo não pode ser  facilmente observada ou guardada num frasco como antídoto para as  dificuldades. Pelo contrário, ela deve ser continuamente renovada e  estimulada para que cresça, ou então definha e morre. Aqui vemos a  importância não só do poder político e do seu discurso, mas também da  capacidade do próprio povo para enfrentar as situações com a certeza de  que vale a pena lutar por uma causa, ainda para mais quando essa causa  somos nós. Talvez o remédio milagroso seja, como se diz, o regresso dos  mitos. A reinvenção de novas histórias. O clássico herói.
Com efeito,  personalidades como Winston Churchill diziam-se inspiradas pelos seus  antepassados, e William Shakespeare aprendeu muito do que  sabia inspirado pelos heróis dos textos gregos, e eu acredito que estes  exemplos tenham desempenhado uma influência muito forte na educação de  ambos. O problema é que a sociedade tende a diluir os padrões de  pensamento em nome da igualdade. E é sempre mais fácil usar  lugares-comuns e chavões fúteis ao invés de uma real reflexão sobre um  determinado assunto. E simplesmente resignamo-nos a ser como somos,  confundindo razoabilidade com conformismo. O que não é nenhuma surpresa  se pensarmos que somos habituados desde dos primeiros anos da nossa  formação a seguir as tendências lógicas da maioria, a não dar voz às  nossas ideias, a não exercitar as nossas mentes. O lado negativo destes  factos é que o resultado será um atrofiamento tanto psicológico quanto  intelectual, tanto cultural quanto social.
Como é que podemos esperar  que o projecto de vida em sociedade resulte num bem maior e comum a  todos, ou seja, em algo de positivo e universal, quando essa mesma  sociedade é constituída na sua natureza intrínseca por indivíduos  desiludidos e tristes? 
 
 
Na verdade, podemos observar que ao longo da nossa história, sempre  encontrámos de uma forma ou de outra uma relativa união em torno de  determinados sentimentos (sentido de honra; humildade e amor à pátria; o  vibrar nas vitórias desportivas; o pessimismo actual) e maneiras de  sentir quem somos, e quem é o Outro. Ou seja, o povo português é  relativamente homogéneo nas suas concepções ideológicas e construções  mentais das imagens que desenha acerca de si e dos Outros. É  interessante observar que raramente se houve falar do povo português no  sentido singular de tomar cada indivíduo como uma unidade própria,  autónoma e independente. Somos quase dez milhões, mas parecemos sempre  que somos muito mais...É claro que tratamos de assuntos muito delicados  para algumas consciências, pois ao assumirmos isto, temos de comprovar  com base em exemplos mais ou menos conhecidos ideias que podem não  passar de preconceitos fruto da equação pessoal do investigador. É o  caso de generalizações como quando afirmamos que fomos ou somos um povo  racista, ou preguiçoso, ou fatalista, ou poeta, etc. Nenhuma destas  afirmações pode ser cabalmente comprovada, ou refutada. Mas também é um  notável reflexo de um meio termo constante, d'un quelque chose  inominável mas infinito. Procuramos homogeneizar todas as relações na  sua indeterminação, tomamos o desnecessário pelo necessário, e perdemos  todo o sentido de necessidade cultural. E é nesta dúvida, nesta perda,  neste impasse que somos, que acabamos por ficar perdidos em nós.
 
 
 
Ainda assim, penso que a mudança é possível. E o papel da  universidade é fulcral no desenrolar de todas estas questões. Durante  muitos anos, era nas universidades que se formavam verdadeiras escolas  de pensamento que iriam influenciar e revolucionar a sociedade em que  estavam inseridas. E isto não porque procurava educar cegamente os  indivíduos de forma homogénea ao serviço do Estado, mas antes porque  procurava libertar o espírito das pessoas, estimulando a criatividade  própria de cada um como ser singular e útil para o desenvolvimento  do país. De facto, a intenção original das academias e das universidades  reformadas era proporcionar um lugar publicamente respeitável e um meio  de apoio para os homens teóricos - dos quais quando muito há apenas uns  tantos em qualquer nação - se encontrarem, trocarem as suas ideias e  treinarem jovens nos caminhos da ciência. Hoje em dia, talvez mais do  que nunca, o papel de escola de pensamento das universidades deve ser  reforçado.
Eu defendo que a universidade como instituição deve compensar  o que falta aos indivíduos numa democracia, encorajando os seus membros  a praticar um espírito de cultura. Como repositório das mais elevadas  capacidades e princípios do próprio regime, deve ter um forte sentido da  sua importância fora do sistema de indivíduos iguais. A universidade  deve questionar e criticar a opinião pública porque tem dentro de si a  fonte da autonomia: a busca e até a descoberta da verdade de acordo com a  natureza humana. No entanto, actualmente algo de absolutamente novo e  potencialmente negativo é o facto de que a liberdade de pensamento deu  lugar à liberdade de expressão, em que o gesto obsceno goza do mesmo  estatuto protegido que o discurso demonstrativo. E como é que a ciência  reage a isto?
Nós, cientistas sociais, futuros antropólogos, devemos  afirmar outras perspectivas que englobem o todo social, e apontar  caminhos de resolução fiáveis e efectivamente possíveis. Devemos  contrariar os discursos fáceis e preconceituosos acerca da realidade.  Para verdadeiramente compreendermos o carácter da modernidade, da  globalização, dos conflitos sociais, e tantos outros conceitos  problemáticos, devemos-nos afastar da experiência limitativa do aqui e  agora que só nos leva a uma consequente perda de perspectiva. Eu  recuso-me a desistir face à crise de conhecimento que se tornou em  alguns países uma ferramenta politicamente útil, e aceitar de forma  conformada esta crise da democracia liberal. Curiosamente, denoto que é  em democracia, a mais livre das sociedades, que os homens acabam por  estar mais dispostos a aceitar doutrinas que lhes são impostas. Ninguém  sozinho parece poder ou ter o direito de controlar acontecimentos que  parece serem movidos por forças impessoais. Veja-se a desculpabilização  dos moldadores da opinião pública sob a égide da liberdade absoluta de  poderem dizer tudo aquilo que lhes apetece, e desenhar tudo aquilo que  se queira, mesmo que se esteja a gritar a plenos pulmões para matarmos  todos os judeus, ou muçulmanos.
 
 
 
Isto leva-nos a outra questão. No que diz respeito à forma como tem  sido debatido a polémica dos cartoons, julgo que nenhuma personalidade  mediática falou tão acertado quanto o Dr. Ângelo Correia no programa Prós e  Contras da RTP. Toda a defesa da sua opinião acerca do assunto era a que  um antropólogo teria: devemos separar os vários conceitos e analisá-los  no seu contexto, pois uma coisa é o fanatismo religioso, outra coisa  são tradições ancestrais; outra é o islamismo, outra é a  instrumentalização das massas pelo poder político, outra coisa ainda são  milícias armadas, outra é o povo, e não podemos simplesmente pôr tudo  no mesmo «saco». Para além disso, ainda devemos ter em mente que os  media só filmam aquilo que mais impacto terá nos telespectadores. Uma  multidão enraivecida a queimar bandeiras é sempre mais espectacular que a  restante maioria da população que não participa nestes comportamentos e  assiste distanciadamente à violência gratuita que não subscrevem.
De  facto, a adulação do povo e a incapacidade de resistir à opinião pública  são os vícios democráticos característicos dos escritores, artistas,  jornalistas e quaisquer outros que estejam dependentes de uma audiência  insaciável. Um homem nunca deve deixar-se vencer pelos acontecimentos, e  devemos ter a maturidade de aceitar que as esperanças de modificar a  humanidade quase sempre culminam em modificar não a humanidade, mas o  pensamento de uma pessoa.
Lembro-me de ter lido algures que os antigos  estavam sempre a elogiar a virtude, mas os homens não se tornavam mais  virtuosos por causa disso. Por toda a parte havia regimes podres,  tiranos a perseguir o povo, homens injustiçados, etc., e os mais sábios e  prudentes viam claramente o que estava errado em tudo isto, mas a sua  sabedoria não gerava o poder para fazer qualquer coisa a este respeito. 
Talvez o nosso pessimismo seja um produto dos tempos. Numa democracia  onde os homens já pensam que são fracos, acabamos por estar demasiado  abertos a teorias que ensinam que somos fracos, as quais fazem os  indivíduos pensar que controlar a acção é impossível, e o resultado é  claramente um maior enfraquecimento de nós próprios. O porquê  das problemáticas sociais é ainda recente e estranho ao moderno espírito  democrático, que não consegue libertar-se dos seus constragimentos  intelectuais e analisar adequadamente, não «encaixadamente», as  diferenças e as identidades dos indivíduos.
Sempre que há um momento  complicado, como o clima de pessimismo que vivemos actualmente, os  homens democráticos devotados ao pensamento têm uma crise de  consciência, e procuram descobrir um caminho para interpretar os seus  esforços pelo padrão da utilidade, ou então tendem a abandoná-los ou a  deformá-los. Julgo que esta tendência é realçada pelo facto de que na  sociedade igualitária praticamente ninguém tem uma grande opinião de si  próprio, e baseia-se em estereótipos convencionais para representar o  Outro.
 
 
 
Em todo o caso, teremos sempre de admitir que a natureza humana não  se pode alterar para ter um mundo livre de problemas. Por mais  desesperante que isto possa ser, a verdade é que o Homem, e os  portugueses não são seres que facilmente resolvam problemas, somos antes  seres que acima de tudo reconhece problemas e os aceita,  muito embora tenhamos que admitir que é o esquecimento a nossa forma  mais subtil de resolver problemas. Falta-nos a ousadia de afirmar como  Marx de que a humanidade nunca coloca a si própria problemas que não  sabe resolver. Enfim, há sempre tanto para dizer. Mas tudo isto não  passa de um parecer pessoal. As grandes questões que cada um de nós  deveria colocar a si próprio continuam a ser «quem sou eu», «o que é o  Outro», e será que a minha «opinião serviria como valores»?
Isto leva-me a recordar uma passagem de Tocqueville: «(...) nas  sociedades democráticas, cada cidadão está habitualmente ocupado com a  contemplação de um objecto muito insignificante, que é ele  próprio( ...)». No caso português, a situação assume contornos  peculiares, sendo por ventura o grande espírito consumista, a corrida  desesperada ao crédito financeiro e aos bens de luxo alguns bons exemplo  dessa contemplação desmedida por nós mesmos. A gravidade do problema é  que essa contemplação é agora intensificada por uma indiferença maior  para com o passado e pela perda de uma visão nacional do futuro. Ainda  assim, podemos depositar as nossas esperanças nos jovens de amanhã para a  construção de uma nova atitude no espírito dos portugueses. Mas  infelizmente, o único projecto comum e fantástico que parece ainda  ocupar a mente de muitos jovens, especialmente as mentes dos  jovens norte-americanos, não é o fim da guerra ou o combate à fome, mas  sim a exploração do espaço, que toda a gente sabe estar vazio...